O CRIME DE TRAIÇÃO À PÁTRIA:

O CRIME DE TRAIÇÃO À PÁTRIA:

O Art.º-141.º Do Código Penal é simples e claro: "Será condenado na pena de prisão maior de vinte a vinte e quatro anos, todo o português que: 1.º intentar, por qualquer meio violento ou fraudulento ou com auxílio estrangeiro, separar da mãe-Pátria ou entregar a país estrangeiro todo ou parte do território português, ou por qualquer desses meios ofender ou puser em perigo a independência do País. 2.º Tomar armas, debaixo das bandeiras de uma nação estrangeira, contra a Pátria". Simples e claro como o juízo do nosso povo, quanto à forma como a Pátria foi mutilada.

MUCABA, O ÚLTIMO REDUTO DA PORTUCALIDADE EM AFRICA.



Para situar um pouco no tempo a acção do Governador em Angola. É elucidativo das dificuldades e do sofrimento na versão que se segue respigada dum relatório do Chefe do Posto, Hermínio Carvalho de Sena, que teve nas suas mãos a sorte dos habitantes da povoação de Mucaba.

«A noite de vinte e nove  de Abril foi longa e tormentosa. Chefe do Posto e habitantes da povoação tiveram a vida por um fio. Nessa noite amargurada, foi o corolário dum martírio incessante, que se prolongou por muitos meses. Para uma melhor compreensão, registam-se os passos anteriores a ela e também os que se sucederam.
A excitação nos povos do norte de Angola começou muito antes de quinze de Março de 1961, data do rebentamento do terrorismo. A independência do antigo Congo Belga, ocorrida em Junho de 1960, acelerou nas populações fronteiriças o desejo de imitação. Por essa altura, quando o Chefe do Posto regressava do Posto de 31 de Janeiro, deparou com um movimento anormal, perto da Regedoria de Tolane, tida como de confiança.
O Regedor, todo ele alterado, mal responde às perguntas que lhe são feitas. Declara de motu próprio que "o Chefe do Posto será morto e ele, Regedor, será o Rei de Mucaba". Depois disto, várias diferenças começam a ser notadas: ordens do Chefe do Posto mal cumpridas, fugas de pessoal das fazendas de café, saídas exageradas de gente para o Congo ex-Belga. As suspeitas acumuladas levam o Chefe do Posto, de parceria com elementos da população, a organizarem um serviço de patrulhamento, desde o apagar das luzes até às cinco da manhã, que começa no dia catorze de Julho de 1960. Nesse dia chega a notícia de o Regedor Tolane ter abandonado a residência para se internar na mata.
O patrulhamento prossegue nos meses de Agosto, Setembro, Outubro e entra pelo Novembro adentro. A treze deste mês, na deslocação do Chefe do Posto à Regedoria de Tolane, não encontra o Regedor, nem a Bandeira Nacional içada, como era costume aos domingos e dias feriados. No dia vinte e um realiza-se a cerimónia da transferência do Posto Administrativo do Mucaba, do Concelho da Damba para a jurisdição do Concelho do Songo, com a presença dos Administradores daqueles Concelhos, Autoridades tradicionais e elementos da povoação comercial.

Os meses de Dezembro de 1960 e Janeiro de 1961, passam sem manifestações hostis. No dia vinte e nove de Janeiro, o Chefe do Posto conferencia com os Sobas da região, tendo em vista os trabalhos para a construção duma picada destinada a ligar o Posto com o Songo, sede do Concelho. Os Sobas cumprem e a abertura da picada começa sem incidentes. O mês de Fevereiro é todo dedicado a esta tarefa, apesar de chegarem notícias do recrudescimento das fugas de pessoal das fazendas de café.
No domingo, doze de Março, o Chefe do Posto faz nova diligência à Regedoria de Tolane. Regista outra vez a ausência do Regedor e da Bandeira Nacional no poste da Regedoria. Nas buscas efectuadas nada apura sobre o seu paradeiro. Dois dias depois volta a andar por vários povos, em serviço de fiscalização. Não regista distúrbios. Mas o ambiente observado é opressivo. Na volta à povoação decide activar o patrulhamento.
No dia quinze, o Chefe do Posto organiza uma patrulha, composta de civis, soldados com baixa e cipaios, que marcha sobre os povos de Uando, à procura do Regedor TolaneNinguém dá notícias dele. Pela tarde, informado por um comerciante, toma conhecimento das chacinas feitas no Quiteche, Aldeia Viçosa, Vista Alegre e fazendas de café na área do Uige. A fogueira que arde um tanto por todo o território não atinge Mucaba. No dia seguinte promove uma reunião com os comerciantes e pessoal do Posto, na qual dá conta da situação e em conjunto, traçam uma linha de conduta.
Em consequência, melhoram os processos de fiscalização, ao mesmo tempo que os comerciantes tomam o compromisso de não venderem catanas, nem machados, facas e pregos. Entretanto, os trabalhos da construção da picada continuam em bom ritmo. Mas o Chefe do Posto, insatisfeito com o silêncio dos povos da sua área, no dia dezassete vai observar pessoalmente. Nada acontece de anormal. Todavia, continuam a chegar notícias de alastramento do terrorismo nas terras do Norte.
Como medida de precaução, no dia dezanove são evacuadas para Luanda, via Engage, as senhoras e as crianças, ficando só os homens. O serviço de vigilância é redobrado, com turnos de ronda, permanentes, dia e noite. Os elementos da população concentram-se em duas residências, uma em cada extremo da povoação.

A vinte e três, o chefe do Posto percorre a zona de Uando e não encontra nos povos nenhum Soba presente. Entretanto os trabalhos da picada chegam ao seu termo e o Chefe do Posto segue por ela ao Songo e dali a Carmona (Uige), aonde se inteira da gravidade dos acontecimentos. Em trinta e um de Março a picada é dada por concluída e o pessoal transferido para o Posto, em serviço de limpeza da povoação. Apesar dos acontecimentos o serviço decorre sem incidentes. A onze de Abril, o Chefe do Posto sai com o pessoal à picada Mucaba-Songo, a rectificar um troço de trânsito difícil.
No dia quinze são reforçadas as patrulhas e as rondas. A população dá sinais de cansaço, mas decidida a andar por diante com as tarefas de defesa. Como medida de precaução, o Chefe do Posto manda recolher ao Posto o pessoal em serviço nas fazendas de café, proprietários e empregados. No dia dezanove, utiliza o pessoal regressado da picada para começar a preparar uma pista de emergência para aterragem de aviões.
Ao anoitecer regressam as brigadas de fiscalização que haviam seguido para os lados do Uando, com dois feridos e um morto. Trazem recado dos sublevados que diz: "Esta terra é nossa! Não queremos Chefe do Posto, nem brancos!" No dia seguinte segue nova diligência em busca do Regedor Tolane, em vão. Ninguém dá conta do seu paradeiro. A situação torna-se perigosa. Os amotinados da Serra, do lado do Posto do Bungo, atacam uma carrinha que se deslocava naquela área, em serviço de observação, com oito ocupantes. Resultado: dois feridos e a viatura crivada de balas.
A situação é tensa, os meios de defesa escassos... O Chefe do Posto manda carta ao Admnistrador do Concelho do Songo a dar parte do acontecido e a pedir, mais uma vez, os reforços que nunca foram enviados, um emissor P-19 e uma avioneta para evacuar os feridos. Pelos elementos capturados, sabe-se que há concentrações para ataque à povoação, à espera do "vento" que há-de vir do Congo ex-Belga para se lançarem ao assalto.
A população passa a concentrar-se toda numa só residência, durante a noite, em estado de alerta. O Chefe do Posto deixa a sua residência e junta-se à população para a luta que se aproxima. São poucas as armas para a defesa: algumas espingardas, de bala e caçadeiras, umas poucas de pistolas e uma pistola metralhadora. As munições oscilam entre seis e sete mil tiros. A comunicação com o exterior faz-se mal, por se ter avariado o emissor P-19. As pessoas acusam um estado de mal-estar, ressentidas de tantas noites perdidas quase sem repouso.

Numa das constantes rusgas efectuadas nos povos, é capturado o Regedor Tolane que, antes de se entregar, destrói pelo fogo os documentos que tinha em seu poder. Ao interrogatório nada responde. Diz somente que "ele é dono da terra de Mucaba". No dia vinte e quatro de Abril o Chefe do Posto vai a Carmona (Uíge) fazer a sua entrega à Administração daquele Concelho e de outros sublevados capturados.
Das diligências efectuadas para melhorar o poder de fogo, não consegue senão seis caixas de cem cartuchos para caçadeira. Os dois enviados aos povos que não tinham regressado, aparecem à noite, feridos, um deles em estado grave. Dão a notícia de os terroristas terem matado as crianças mestiças que viviam nos povos. O Chefe do Posto, sem perda de tempo, vai ao povo Lunda e salva uma menina mestiça, de oito anos, que vivia com a mãe naquele povo, perto da povoação comercial.
Em vinte e cinco de Abril fica concluída a pista para aterragem de aviões. A prever a necessidade de utilizar a Capela como reduto de defesa, o pessoal disponível é aplicado na abertura dum fosso em sua volta, como nas fortalezas de outros tempos. Ao entardecer uma coluna mista, composta de militares e civis, proveniente do Engage, chega à povoação, depois de vencer inúmeros obstáculos postos na estrada pelos terroristas.
É  portadora de algumas espingardas e munições, ajuda que é recebida com muito agrado. Fica-se a saber por ela que as estradas de ligação com o Posto de Mucaba se encontram todas cortadas. No dia 26 vêem-se sinais luminosos toda a noite. Durante o dia engrossam as concentrações de gente. Agora as patrulhas estão limitadas à povoação, porque a saída para fora é perigosa.
Neste dia a Força Aérea, baseada no Engage, multiplica as suas acções na Serra de Mucaba e nas áreas limítrofes de Damba, 31 de Janeiro e Bungo. Na esperança de serem atendidos por algum dos aviões que sobrevoam a povoação, os defensores de Mucaba, com cal e tiras de pano crú, escrevem no chão a pedir socorro, porque há feridos para evacuar e têm o P-19 avariado. Pela tarde aterra na pista, pela primeira vez, um avião Dornier, pilotado pelo Tenente-aviador Negrão, que entrega um P-19 e correio, dá notícias. Confirma o facto de as estradas estar em cortadas e as concentrações dos sublevados em volta da povoação.
Em toda a noite ninguém dorme, com a preocupação do ataque que possa ser desencadeado dum momento para outro. Pela manhã apresentam-se três nativos, do povo perto da povoação, serventes dum comerciante feridos, um deles em estado grave. Dão a notícia de os terroristas terem matado o Soba do povo Lunda, por não querer aderir à rebelião. Notícias captadas do Posto de 31 de Janeiro, dão como certo o ataque ao Posto de Lucunga e confirmam o desaparecimento do Chefe do Posto, cabo verdeano, Manuel Coutinho.
A população exausta, em estado de desespero, decide abandonar a povoação e começa a atirar para as carrinhas as coisas necessárias à viagem. O chefe do Posto, revestido de paciência, pede-lhes que suspendam o gesto e fala-lhes ao coração: 
    "Sempre que precisastes de mim nunca deixei de estar convosco e de vos ajudar.                                                         Houve sempre entre nós um verdadeiro espírito de camaradagem..."

                   Com este intróito entreolham-se. O Chefe do Posto prossegue:
 "Na hora presente dá-se precisamente o contrário. Eu é que preciso de vós, do vosso apoio e colaboração, porque sozinho nada poderei fazer aqui senão aguardar que os rebeldes me matem. Eu não abandonarei nem o Posto nem a população que me foram entregues e o mínimo que me poderá acontecer é ser chacinado como o foi o meu colega do Posto de Lucunga!..."
Os rostos dos comerciantes dão sinal de comoção. O Chefe do Posto continua: 
"Qualquer saída nesta altura, com as estradas cortadas e inutilizadas, seria um autêntico suicídio!... 
"Um deles contestou: "Ficar para quê? Para morrermos todos? A nossa resposta é não!"
 O Chefe do Posto insiste: "Vamos defender-nos dentro da Capela, numa força unida, em verdadeiro espírito de camaradagem, lutarmos até ao fim, em defesa das nossas vidas e desta terra de Mucaba!”
Eles hesitam. Por fim decidem ficar. Lançam-se então, todos, na preparação da Capela, a fazer do seu interior uma fortaleza. Carreiam para lá todo o preciso. Como alimentos de consumo imediato, pão, conservas, água, vinho, medicamentos, fósforos, velas, colchões, cobertores e tudo quanto lhes parece indispensável.
Como complemento armam barricadas e andaimes em volta das paredes e preparam-se para aguentar a borrasca que se aproxima. No dia vinte e oito passam a noite em claro. No arraial terrorista persistem os sinais luminosos, que prenunciam acção iminente. E os reforços, pedidos com insistência, nada de chegarem!...
Vinte e nove de Abril é um dia sem fim para os defensores de Mucaba, enclausurados na Capela da povoação. A excitação começa de manhã, com a movimentação dos sublevados, que avançam em grandes grupos. Acabam-se as dúvidas. O momento do embate aproxima-se. Avistam-se já os primeiros grupos entre cinco e sete quilómetros.
O Chefe do Posto, sob pressão, expede uma mensagem ao Governador do Distrito a dizer:
- Tenho honra informar V.Ex.ª durante dia e noite ontem foram avistados sinais terroristas concentrados volta população pelo que população se manteve sempre firme vigilância ponto qualquer pessoa indígena ou não homem ou mulher sai povoação é logo caçada e espancada ou morta ponto Os trinta defensores povoação estão reunidos edifício Capela não podendo sair qualquer lado virtude todas vias comunicação cortadas ponto Peço licença para lembrar V. Ex.ª que esta população não é digna de ser abandonada à mercê da sorte porquanto ela deu sobejas provas patriotismo e coragem sempre vigilante dia e noite já vai para dois meses ponto Estamos fisicamente baixa forma pouco mais podendo fazer a manter-se esta situação ponto Se reforços muitas vezes pedidos não forem enviados já vírgula amanhã ou depois será tarde ponto.
Pelas quinze horas aparece um avião no ar, o Dornier que faz sinais de querer aterrar. As condições atmosféricas são péssimas. Mas o Tenente-aviador Negrão, apesar do perigo, faz-se à pista e pousa sem novidade. A avioneta traz um furriel, com uma pistola metralhadora e um soldado com uma espingarda. Nada mais!... Pouco depois aparecem mais duas avionetas, que não aterram por causa das más condições do tempo. Estas avionetas transportavam elementos duma secção militar com as respectivas armas e munições... Pouca sorte!...

Cerca das dezassete horas uma avioneta, pilotada pelo engenheiro Pereira Caldas, sobrevoa a povoação e lança uma garrafa contendo uma mensagem que diz ter avistado grupos de terroristas armados, cerca de cinco quilómetros a caminho da povoação. Os defensores de Mucaba correm e encerram-se na Capela. Para melhor compreensão do que se passa no exterior, organizam uma patrulha, formada por duas viaturas, levando cada uma oito ocupantes. Numa vai um soldado e na outra um furriel e um soldado.
Sob o comando do furriel Demony Vieira, as viaturas marcham ao encontro do inimigo. Não tarda a dar-se o desastre. A viatura da frente cai numa cilada e sofre um violento ataque, do qual resulta a chacina de cinco ocupantes. A outra escapa por milagre. O condutor revestido de sangue frio, retira de marcha atrás e chega ileso à povoação com os sobreviventes. Agora os campos estão extremados. Nada mais há a fazer senão a defesa das suas vidas. O soldado que havia sido capturado pelos amotinados consegue fugir e apresenta-se na Capela. Entra por uma janela, em escada que lhe é lançada de dentro.
Metidos todos na Capela, estão agora de portas trancadas, posições tomadas e nervos tensos. Pelas dezassete horas e meia os sublevados iniciam o ataque, ao som de cânticos guerreiros e guinchos arrepiantes. Vozes de comando incitam: "Não tenham medo!... As balas dos brancos são como água!...Não matam!..."Trocam-se tiros entre atacantes e defensores. A luta ganha intensidade e entra pela noite adentro. Com o receio de esgotarem as munições os defensores abrandam o ritmo do fogo. De olhar atento, apontam com maior eficácia.
As luzes da rua, acesas, permitem ver os movimentos do inimigo. Na Capela para reduzir a visibilidade, acendem-se apenas duas velas. Os defensores, fora de si dão sinais de ânimos exaltados. No auge do combate há quem reze!...Cada um evoca o Santo da sua devoção!...Pelo emissor P-19 o Chefe do Posto lança para o ar pedidos de socorro: ”Não dispomos de recursos para resistir” Durante muito tempo ninguém dá sinal de entendido. Só a partir das vinte e duas horas chegam algumas respostas:"Aguentem, tenham coragem!..."
A voz da Capela repete os apelos: "As nossas munições estão quase no fim!... Mandem-nos aviões!... Eles são muitos!... Parece nascerem do chão.'... As nossas vidas estão em perigo!... Já não aguentamos mais!...Ajudem-nos!..." O ambiente é infernal!...
Os aviões roncam no ar mas não conseguem vencer a cortina de nevoeiro. Pela madrugada dá-se uma baixa entre os defensores. Eugénio Veríssimo sucumbe, atingido por carga mortífera. A comoção abate por momentos os ânimos, que depressa se recompõem. O tiroteio prossegue, intenso!... No extremo do desespero, o tempo parece que não anda!...
Para cúmulo, a bateria do P-19, descarregada, não permite a comunicação com o exterior... Só a intervalos regulados dá para emitir mensagens curtas! "Pedimos socorro!...O inimigo está a aproximar-se!... Só lhe falta atingir as portas da Capela!..." Chegam palavras de alento, de todos os lados. 
Santo António do Zaire anima: "Aguentem até chegar a Força Aérea já em marcha." Outras vozes acodem com palavras de amizade e de solidariedade. Roncam aviões no ar, que não actuam porque a densidade do nevoeiro não deixa ver nada.
Os defensores estão exaustos. Não comem há muito tempo, não dormem, não têm um momento de pausa!... Pela madrugada põem uma mensagem no ar que julgam ser a última, dirigida a todos quantos os têm acompanhado no transe por que estão passando: "Estamos irremediavelmente perdidos!... Já não temos munições!... O inimigo está próximo das portas da Capela!... Vamos morrer!... Mas combateremos até à última gota de sangue!... Salvem-nos por amor de Deus!..."
De fora não cessam as palavras de estímulo, que nada adiantam. A situação é trágica!... O P-19 entra em descanso para não esgotar a fraca carga da bateria!... A resistência enfraquece!... Não há munições!... O inimigo entusiasma-se com a vitória que tem nas mãos. Destaca elementos que, às corridas, vão buscar bebidas às casas comerciais. Na volta exibem-se com gritarias estrondosas. Agora atacam em força, com armas de bala, canhangulos e até com pedras!...
Os resistentes, pelas seis da manhã, experimentam o P-19. Lançam no ar o derradeiro apelo: "Já não há munições!...Só nos resta combater à baioneta se o inimigo arrombar as portas da Capela!... Morrer ou sobreviver é a sorte que nos espera!..." Tomam entre si uma resolução extrema: para não caírem vivos nas mãos do inimigo, dispõem-se a morrer, sim, mas abatidos pelas armas que reservam para o efeito!...

Pouco depois o avião PV-2, comandado pelo Tenente-Coronel Diogo Neto, Comandante do Grupo Operacional do B.A-9, rompe a cortina de nevoeiro e faz vôo rasante em volta da Capela!... Sobre os terroristas lança bombas e metralha, e persegue-os, em fuga, pela estrada além!... Esta acção, providencial, levanta o ânimo dos resistentes!... Os homens de Mucaba estão salvos!... Dos seus corações brotam hinos de alegria!...Nos rostos há sinais de comoção!... E aliviados e maravilhados, reentram na vida, que já tinham por perdida!...
E para que a Capela não seja bombardeada, na persuasão de que tenha caído em poder dos terroristas, os resistentes destelham um canto da cobertura e com pano branco, dão sinais de ainda estarem vivos. Por algum tempo conservam-se na Capela, à espera que haja a certeza de não existirem terroristas à espreita. Na rua principal surge a figura do cozinheiro do Posto, Viegas, de braços levantados, em corrida para a Capela. Teve noite tormentosa, com as duas mulheres e filhos, a tremerem de medo.
Entra mais um mestiço, carpinteiro, com uma menina de três anos ao colo, baleada pelo inimigo, que falece pouco depois. E chegou o momento de saírem!...Os resistentes abrem as portas da Capela!... Comovidos, voltam enfim a pisar terra chã!...Persiste ainda na mente o pesadelo da noite longa!... Sentem ainda no corpo o desgaste da corrosão!...
No seu íntimo conservam o historial de meses consecutivos de sobressaltos, de vigílias, de noites mal dormidas!... A tormenta passou!... Que seja glorificado o Tenente-Coronel Diogo Neto, o salvador, o que se sujeitou a perder a vida para salvar a dos resistentes!...Eles estão salvos, depois duma fogueira de tantas horas, a balancearem entre a vida e a morte!... Agora estão ali, emocionados, a respirar o ar da felicidade!...
Os que tinham ficado de fora e escaparam, juntam-se a eles. Não aparece o cabo dos cipaios, chacinado, por ter deixado o esconderijo inicial para ficar nas dependências do Posto. Os resistentes correm ao local mas não encontram senão fragmentos: pernas para um lado, braços para outro, corpo espezinhado, cabeça esborrachada!...A marca odiosa do terrorismo...
Pelas treze horas vários aviões sobrevoam a povoação. Algumas avionetas aterram. Desembarcam jornalistas, fotógrafos e visitantes. Querem ver os resistentes. Querem ouvi-los, fotografá-los, abraçá-los... Do Governador-Geral de Angola chega uma mensagem do teor seguinte:
 "Acabais de praticar um dos mais belos feitos da nossa História ponto Angola inteira recordará os heróis civis e militares de Mucaba e venerará sempre a memória dos que tombaram no campo da honra ponto Viva Portugal ponto."
Governador.


O dia 20 é de encantamento para os resistentes de Mucaba. Atordoados, semi-inconscientes, com o lance dilemático de matar para não morrer, a pesar na mente, passam as primeiras horas fora de si. Deambulam sem itinerário, revêem os lugares por onde andaram, localizam os estragos feitos pelos terroristas, tudo isto sem destino nem objectivo. Parecem uns estranhos em meio estranho!... Pelas dezassete horas chega uma coluna mista de militares e civis, proveniente do Engage, com os socorros!...
Só agora porquê? A coluna teve a sua odisseia!... Os seus componentes devem ser glorificados, como campeões da coragem e da determinação! Os trabalhos por que passaram!... Luta para removerem os obstáculos postos na estrada, luta para se defenderem contra os ataques dos terroristas luta para trabalharem sem luzes!... Um inferno de dificuldades, de impedimentos. de contrariedades!... Foi precisa muita firmeza e força de vontade para avançarem até ao destino! As baixas sofridas dão uma ideia da violência do fogo: três mortos e dois feridos, evacuados todos de avião para Luanda.
Os reforços militares recebidos aliviam a tensão dos resistentes. As munições de boca despertam o apetite e quebram o jejum que vem do dia anterior. Entretanto chegam mais mensagens, mais visitantes, com palavras de amizade, de admiração, de solidariedade... Os resistentes despertam para a vida, aplaudidos, enaltecidos, acarinhados. Ao entardecer, com a presença do Redactor do Jornal do Congo, Sousa e Costa, levam a enterrar, nas traseiras da Capela, os companheiros de luta: Eugénio da Saudade Veríssimo, António da Costa Fernandes, Luís Ribeiro e Sebastião Malungo e ainda a menor de três anos.
O mês de Maio prenuncia melhor resposta para os ataques esperados. Os militares presentes, com armas e munições, reforçam o espaço de segurança. Na povoação mantém-se o estado de vigilância e o patrulhamento da área periférica. Descobre-se então uma novidade: a pouca distância da Capela encontram-se recipientes com gasolina e petróleo, que os terroristas destinariam a incendiar a Capela. Estes combustíveis e mais os que existiam nos armazéns da povoação, são enterrados em valas abertas perto da Capela. Agora é um soldado nativo, recuperado, que chega e dá notícia de os terroristas estarem a preparar um novo ataque, com maiores efectivos. Para os receber condignamente o alferes Sousa e Silva pede da Base o envio duma metralhadora MATSEM e munições. Do exterior continuam a chegar manifestações de simpatia e de apoio. Uma avioneta da Empresa de Cobre de Angola lança em pára-quedas, bacalhau, mariscos e bebidas, com uma mensagem a dizer:
"Caro Sena dois pontos É o teu patrício Edgar Vahnon que daqui do avião renova os seus votos de muita admiração pela coragem e indómita bravura de que destes mostras.Teu pai - velho Henrique Sena - ficaria bem orgulhoso. Abraço e até breve ponto."

As iguarias caídas do céu lembram aos resistentes os alimentos que têm na Capela. Como corolário, confeccionam uma refeição de festa. Depois, promovem o enterramento dos inúmeros terroristas mortos na refrega. E a vida retoma o seu curso natural. Seguem-se dias de expectativa, à espera do anunciado ataque. Os resistentes passam o dia na rua. Ao anoitecer recolhem à Capela, onde continuam com o serviço de alerta, agora beneficiado com treze militares armados de pistolas-metralhadoras.
No dia dez de Maio os terroristas desencadeiam o ataque, pelas três e meia da manhã. A neblina que escurece o espaço favorece o seu avanço. Só puderam ser vistos muito próximo da Capela. O fogo nutrido com que são recebidos surpreende-os. Põe-nos em fuga desordenada, sem tempo para levarem os dez mortos que deixam no chão. Na debandada, vingam-se, raivosos, derrubando a antena do emissor P-19, arrombando residências e estabelecimentos comerciais. Se o plano era o de lançar fogo à população, ficou gorado. Não encontraram o combustível com que contavam. A este revés inesperado junta-se outro, o da Força Aérea que intervém, vigorosamente e desenvolve grande actividade em volta da povoação.
No dia treze de Maio, a pedido da população, cansada de tanto sofrimento, o Chefe do Posto expede uma mensagem ao Governador do Distrito, a agradecer todas as providências tomadas para a defesa de Mucaba e a pedir que lhes sejam facultados meios para defenderem os seus haveres, pedindo também o regresso às suas casas dos habitantes de Mucaba ausentes em Luanda. 
Nos rostos dos resistentes há sinais de debilidade. As apreensões sem conta, as pressões da luta, as noites de vigília, a insuficiência alimentar, tudo isto corro e as energias e seca as fontes da vitalidade. Os sublevados, por seu lado, não desistem. Mantêm o cerco à povoação e a ameaça de invasão. A situação de perigo leva o Chefe do Posto a enviar ao Governador do Distrito a mensagem seguinte:
"Informo V.Ex.ª população civil exausta precisa repouso pelo que necessário se torna envio urgente mais tropa virtude a existente ser insuficiente defesa povoação ponto Situação agrava-se momento a momento pois terroristas concentrados já muito próximo ponto.
Apesar dos desaires sofridos o inimigo persiste na sua luta. Não se vislumbra trégua próxima. Pelo contrário, reagrupa-se e prepara novas investidas. Para os resistentes é o estado de tensão que se prolonga. No dia dezasseis enviam nova mensagem ao Governador do Distrito a dizer:
" Informa-se ter sido proveitosa a acção aérea aqui desenvolvida ontem pelos bombeiros e aviâo Aéro-Clube de Carmona ponto Agradecemos providenciar remessa urgente gasóleo pois existência só para seis dias ponto."

No dia seguinte os resistentes manifestam a sua preocupação pelo estado de depauperamento em que se encontram. O Chefe do Posto em nome deles envia ao Governador do Distrito a mensagem do seguinte teor: 
"Vencida já mais uma fase difícil da nossa vida na defesa deste rincão bem português e melhorada em parte nossa situação com a presença de militares ouso fazer a Sexa Governador Geral por intermédio Vossa Excelência o pedido seguinte dois pontos De entre os valorosos e destemidos portugueses que me acompanharam corajosa e incansavelmente na defesa de Mucaba contam-se onze casais cujas esposas tal como acontece com a do signatário se encontram ausentes em Luanda desde dezassete de Maio último aflitos com corações amargurados devido não só acontecimentos desenrolados como também e principalmente pelos boatos que circulam Luanda ponto Não deixaria de ser justa recompensa proporcionar a esses heróis que me ajudaram a oportunidade de abraçar as esposas e os filhos para o que o Governo lhes facilitaria uma ida a Luanda por quatro ou cinco dias incluindo um dia para ido outro para regresso garantindo-lhes a viagem também por via aérea ponto No caso de ser possível satisfação pedido poderiam seguir em grupo de três ou quatro de cada vez não sendo de permitir que grupo seguinte saísse sem primeiro regressar o anterior ponto."

A satisfação dada ao pedido permite a saída dos primeiros resistentes em menos duma semana. Gratos por se sentirem acarinhados pelas Autoridades Superiores, transmitem para Luanda, com pedido para ser radiodifundido pelas emissoras da Província, a mensagem seguinte:
 " População Mucaba representada pelo Chefe do Posto Hermínio Carvalho de Sena expressa através da rádio o seu eterno e muito sincero reconhecimento a todos os que acompanharam e com ela sofreram e se lhes dirigiram em cartas telegramas e até ofertas nas horas amargas difíceis e inesquecíveis na sua epopeia ponto."
O dia dezoito é assinalado com uma surpresa agradável para o Chefe do Posto. O avião do Aéro-Clube de Carmona (Uíge) aterra na pista e trás a bordo o Chefe do Posto Menezes para substituição. A sua chamada a Luanda tem por fim a condecoração com a medalha de ouro de Serviços Distintos e Relevantes no Ultramar e a promoção por distinção à categoria de Administrador de Circunscrição de terceira classe.
A justiça mais que merecida, sensibiliza o Chefe do Posto Sena, que não consegue dominar a comoção que o invade. Ele esperaria, no seu íntimo, alguma coisa no género, em reconhecimento ao esforço dispendido, superior à capacidade humana de resistência, mas sem tempo definido. Chega, afinal no momento exacto em que já sente, também ele, o desgaste inelutável da erosão. Bem-haja a providência oportuna, que proporciona o prémio certo no tempo certo!...
Pela tarde, ele abraça os companheiros da desdita, um a um e segue a cumprir o seu destino. Em Luanda, em meio de festas, de aplausos, de louvores, de honrarias, não se esquece dos seus companheiros de luta. Conserva-os bem na memória e envia-lhes a mensagem seguinte:
"Gloriosa população Mucaba cuidado Chefe do Posto - Nesta hora inesquecível em que sou alvo vibrantes manifestações simpatia ponho em vós o meu pensamento endossando integralmente todas homenagens que são mais vossas que minhas pois sem vós a epopeia de Mucaba não seria um facto ponto Afectuosos abraços ponto."

Seguido o relatório fielmente, nos passos afectos ao caso de Mucaba, seria um acto de mau gosto acrescentar seja o que for ao texto original. Por fim resta saudar o Homem determinado que fez das fraquezas forças e puxou dos resistentes até ao ganho da batalha. O Chefe do Posto, medalha de ouro, promovido a Administrador de Circunscrição, Hermínio Carvalho de Sena.


                                                                  Hermínio Carvalho de Sena




RELAÇÃO DOS DEFENSORES DE MUCABA

1- Abel Arlindo Vicente
2- Abílio Dias
3- Adelino Afonso
4- Alexandre Luiz
5- António Nunes Jerónimo
6 - António Nunes Medeiros
7 - António dos Santos
8- António Serafim Bráz
9- Artur Moutinho Sequeira - Ferido no 1º encontro na estrada.
10- Cláudio de Almeida - Morto no 1º encontro na estrada.
11 - Domingos José Bráz
12- Eduardo Teixeira
13 - Eugénio da Saudade Veríssimo - Morto durante o ataque na Capela
14- Fernando Ribeiro Dias
15 - Francisco Alves de Pinho
16- Hermínio Carvalho de Sena
17- João Carvalho
18 - João Medeiros Jerónimo
19 - Joaquim Silvestre
20- Joaquim Dias
21 - Joaquim da Silva Ramos - Morto no 1º encontro na estrada.
22 - Jorge de Oliveira
23 - Jorge de Meio Pereira
24 - José Alves Moreira - Morto no 1º encontro na estrada.
25 - José Dias Duque
26 - José Dias Fernandes
27 - José Baptista - Morto no 1º encontro na estrada.
28 - José Martins Aguiar
29 - José Nunes Jerónimo
30 - José Meio Morais
31 - Laurindo Teixeira Cunha
32- Manuel António Farinha
33 - Manuel de Oliveira
34- Mário Jerónimo
35 - Mário de Oliveira
36- Mário Teixeira.
37 - Ramiro Augusto Moreno
38 - Raúl Dias
39- Silvino Alves
40 - Sargento Demony Vieira - Ferido no 1º encontro na estrada
41 - Teófilo de Almeida
42 - Cabo de Cipaios - Morto nas instalações do Posto durante o ataque.
43 – 1º Cabo Africano - Dado como desaparecido no lº encontro na estrada, apresentou-se mais tarde.
44 - Viegas - Cozinheiro do Posto.
(Do Relatório do Chefe do Posto Sena ).




 Altar da Capela, durante os ataques esteve sempre cuidada.

Os reforços para protecção feitos no interior da Capela. 
O Tenente Coronel Camilo Rebocho Vaz,
na altura Governador Distrital do Uíge 
visita Mucaba para felicitar os heróicos defensores.

 
No interior da Capela, 
o Tenente Coronel Camilo Rebocho Vaz entre os heróicos defensores. 
A escada para acesso ao telhado de onde controlavam os terroristas, 
 e camas improvisadas, onde um ou outro, tentava descansar enquanto outros vigilavam.
Os heróicos defensores junto aos militares que chegaram a Mucaba.

                                                Mucaba ficará na história de Portugal, 
                                    como o último reduto da Portucalidade em África.
                       



O que fica exarado, porém, - conduz-nos a Mucaba - um dos mais brilhantes feitos da nossa História de Além-Mar, e um dos mais gloriosos baluartes da nossa resistência à pretensão dos nossos inimigos, internos e externos, de nos expulsar de territórios nossos há séculos, em seu exclusivo benefício. 




¡ GILBERTO SANTOS E CASTRO !


TEN-COR. GILBERTO SANTOS E CASTRO, CO-FUNDADOR DOS COMANDOS.

"Estamos em Agosto de 1975. Um pequeno grupo de portugueses desembarca em Angola. Eram poucos.
Todos assistimos à maior mentira do século: a "independência" de Angola.
Qual Angola?
A que víramos próspera, virada ao futuro, na preocupação do bem estar das suas gentes, na riqueza da sua história, no valor da sua cultura, na
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grandeza e na dimensão do seu viver? Ou a que encontramos destruída, com os povos famintos a fugir de um lado a outro, para morrerem mais tarde? A que encontrámos em gritos de dor e pedindo a nossa ajuda, uma palavra de esperança, uma afirmação de que tudo era um pesadelo e de que voltariam à tranquilidade do seu viver?
Qual independência?
A que trouxe a Angola a ocupação colonial por um exército estrangeiro, em flagrante conquista militar, sem quaisquer laços que liguem o povo aos ocupantes, para além da anuência de uma minoria dirigente e totalitária e porque um governo, em Lisboa — provisório mas definitivamente irresponsável — o consentiu também? O que pensa realmente deste facto trágico o povo português e desgraçadamente o que pensará o povo de Angola?
Foi um grupo pequeno que se bateu contra isto tudo. Merecem por isso o respeito e a consideração de todos os portugueses. Por se terem batido e porque se bateram bem.
Alguns pagaram cara a sua dádiva. E quando no pequeno cemitério do Ambriz desceram à terra, com toda a população a assistir em religioso silêncio, com as honras devidas e cobertos com a Bandeira Portuguesa, repetia-se apenas o que ao longo dos séculos acontecera. Mais uma vez aquela terra
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acolhia generoso sangue português. Ali estivemos também, meditando e sentindo mais vontade para continuar.
A história deste livro, na simplicidade do relato de uma boa parte dos combates que tiveram de travar-se, dá bem conta do que foi essa luta. Não podemos, porém, deixar de recordar também com sentido respeito os que pelo sul de Angola e em combates de gigantes, libertaram sucessivamente Pereira de Eça, Sá da Bandeira, Moçâmedes e Lobito. Ali tombaram outros tantos, que recordamos com saudade e a maior veneração.
O relatar de uma guerra, na verdade dos factos e com humildade, é privilégio dos que sabem bater-se. É este o caso, na óptica de quem o soube fazer e fazer bem. A outra história, a dos bastidores da intriga política, ficará para ser contada oportunamente. Ela terá de ser contada um dia e sê-lo-á...
Fomos derrotados naquela batalha, mas vencidos ainda não.
Em Julho de 1975 os soldados cubanos começaram a desembarcar em Angola. Faltavam cinco meses para a independência estabelecida nos Acordos de Alvor, e o exército cubano, apoiado
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por material de guerra russo pesado e sofisticado (tanques e mísseis), começou a invadir Angola.
O povo português desconhecia em absoluto este facto, porque a Informação (imprensa, rádio e TV) "mais livre do mundo" simplesmente o ocultava. Aliás, em Julho de 75 tinha também começado no norte do país o célebre "Verão quente". O povo andava atarefado em travar a escalada comunista e tinha perfeita consciência de que se o conseguisse a tempo, Angola nunca cairia sob o domínio soviético. Mas o povo do norte foi traído pelas mesmas pessoas que traíram os angolanos. Não foi por acaso que o "25 de Novembro" só aconteceu depois de consumado o "11 de Novembro", data da entrega oficial de Angola à Rússia.
A primeira importância deste livro, escrito por três Comandos Especiais que tive o orgulho de comandar, é a de provar, com a simplicidade de uma prova visível e concreta, que o exército cubano invadiu Angola antes da independência. Eu próprio comandei os combates que os Comandos Especiais travaram contra os cubanos em Angola, durante os meses de Agosto, Setembro, Outubro e Novembro de 1975... Só na parte norte de Luanda, para "defender" a cidade, estacionavam seis batalhões cubanos completamente equipados, armados e municiados.
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Feita a prova desta terrível verdade, surge a segunda importância deste livro: — Quem autorizou ou quem facilitou a entrada dos cubanos? Quem constituía, nessa época, o Poder em Portugal? Presidente da República, Governo e Conselho da Revolução. Muitos membros-desses órgãos do Poder continuam hoje a ser governantes. Grande parte deles são os mesmos. Como é isto possível? Sobre os ombros desses homens pesa a responsabilidade da morte de milhares e milhares de homens, de mulheres e de crianças. Pesa ainda a gravíssima responsabilidade de terem impedido a libertação da nação angolana. Que povo pode ser livre, quando ocupado por um exército de 30.000 soldados estrangeiros?
Quem autorizou a entrada do exército cubano em Angola, quando o poder soberano ainda pertencia (e pertenceria durante vários meses) ao governo português?
Enquanto esta pergunta não for respondida, que importância podem ter os escândalos em que se envolvem altas figuras do regime e o que podem significar os delitos, os compromissos ou os compadrios que os levaram ao Poder?
Mas enquanto houver portugueses da raça destes Comandos Especiais que foram lutar contra os cubanos, aquela pergunta há-de ter uma resposta. Não se saberá quando, mas terá de ser dada
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às centenas de milhar de mortos, aos que perderam a dimensão de viver e aos que vagueiam apátridas e atónitos...
Visto à luz da História, os Comandos Especiais eram em número ridiculamente pequeno. Apenas um punhado de homens: pouco mais de uma centena e meia.
Vieram de todos os cantos do mundo. Alguns tinham já sido Comandos, ao tempo da sua vida de militares em Angola ou em Moçambique.
Vieram espontaneamente. Nada lhes foi oferecido, e eles nenhumas condições impuseram. Claramente lhes foi dito que os Comandos Especiais iriam apenas ser a resposta altiva dum punhado de portugueses à cobardia e à traição dos que entregavam a Pátria às potências estrangeiras.
Vieram por sua própria e livre iniciativa, na louca esperança de ainda salvar o nosso povo duma desonra afrontosa e de uma perda irreparável.
Logo no primeiro recrutamento surgiram aqueles que iriam constituir a mais extraordinária, a mais inconcebível, a mais desesperada força militar que alguma vez se propôs fazer frente ao
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império comunista: 156 homens dispondo de reduzidíssimo armamento, dependendo quase que exclusivamente de si próprios, pois o apoio logístico era praticamente inexistente. Estavam dispostos a enfrentar o MPLA comunista, mas não sabiam ainda que uma das mais poderosas máquinas político-militares do mundo iria lançar abertamente todo o seu peso na luta a favor do MPLA. Igualmente ignoravam que as autoridades portuguesas iriam dar cobertura aos comunistas.
Mas mesmo que o soubessem, na altura em que se dispuseram a lutar para defender Angola da estratégia soviética, isso não os faria recuar.
Na realidade a acção desse punhado de homens começou no Verão de 75. O "Verão Quente" de Angola.
Quando se verificaram os primeiros incidentes graves, em Maio/Junho de 75, em Luanda e nas áreas que impropriamente designaram como "zonas de influência", esses incidentes deram-se apenas entre os "movimentos de libertação", MPLA incluído.
A cruzada parecia fácil. Se os Comandos Especiais tivessem de enfrentar apenas o MPLA, as coisas teriam seguido um outro rumo: nunca os comunistas teriam tido a possibilidade de tomar conta de Angola.
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O Alto-Comissário que representava nessa altura o Governo Português em Angola teve uma acção claramente definida: de acordo com a letra e o espírito dos tratados, não concedeu nem concederia qualquer privilégio especial a nenhum dos três movimentos. Fixada a data da independência de Angola para 11 de Novembro, seriam até lá tratados em plena igualdade as três forças que entre si disputavam a supremacia em Angola. Mas essa correcta e imparcial acção contrariava os secretos desígnios dos chefes comunistas. O Alto-Comissário juntamente com o Comandante Militar, foram chamados de urgência a Lisboa. Em contra-partida, Rosa Coutinho foi para Luanda. Por curiosa coincidência, precisamente na altura em que eu próprio cheguei também a Angola. Estávamos em Agosto: exactamente no dia 5, desse ano de 1975.
A situação ali já não constituía segredo para ninguém: desde Junho que cubanos e russos mantinham, sem quaisquer preocupações de segredo, o seu Quartel-General em Luanda, na casa que fora do Administrador da Petrangol. Aí funcionava abertamente esse Quartel-General, com todas as secções e com todo o pessoal. Estávamos ainda en-
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tão sob o controle do governo português, esse mesmo governo que num tratado de cariz internacional acordara não dar nem permitir que fosse dada qualquer espécie de tratamento preferencial a nenhum dos três movimentos competidores.
No entanto os soldados cubanos desembarcavam em vagas cada vez maiores em Luanda, nesse Verão de 75. Todo o material de guerra que consigo traziam, ali desembarcou à vista de toda a gente.
Quando os desembarques começaram a ser feitos em massa, em meados de Agosto, passaram a ter lugar em Novo Redondo. E era às claras que diariamente rolavam as colunas militares de soldados e material cubano e russo, rumo a Luanda. Quanto ao MPLA, o movimento que servia de cobertura a essa clara invasão comunista, estava completamente subordinado ao Quartel-General cubano de Angola.
Quem poderia ignorar estes factos? Na realidade, ninguém. Nem em Angola nem mesmo nos países vizinhos. E muito menos o governo português, ou pelo menos o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Mário Soares.
Foi na própria Emissora oficial de Angola — ainda sob a tutela de Portugal e das autoridades portuguesas — foi através da própria Emissora oficial que se fizeram constantes e insistentes
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apelos para que voluntários se apresentassem no cais para trabalhar na descarga desse material cubano e russo. E muitos foram os trabalhadores que acabaram por ser apanhados à força — brancos e negros — e obrigados a ir para o porto trabalhar forçadamente no desembarque desse material.
O facto dos Comandos Especiais terem lutado contra o MPLA — e contra os cubanos e russos que os apoiavam — ao lado de Holden Roberto, poderá levar a pensar que esse punhado de homens fazia parte da FNLA.
Não é verdade.
A FNLA serviu de ponto de apoio para esses homens, cujo único objectivo não era nem o da conquista de riqueza ou fortuna, nem sequer o de passageira glória. Era simplesmente o desejo de manter Angola como nação livre e sem interferências estrangeiras no caminho do seu progresso.
Os Comandos Especiais e eu próprio demos o nosso apoio à FNLA, por ser essa a via mais rápida para tentarmos deter a avalanche comunista que ameaçava ocupar Angola.
Foi esse o teor do acordo inicial com Holden Roberto a quem clara e iniludivelmente afirmei
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que nunca seriamos enquadrados nas fileiras da FNLA — com o que ele plenamente concordou.
De resto — e importa que se diga — Holden Roberto mal conhecia a realidade de Angola.
Para todos nós, para os que ali tínhamos nascido ou os que dali tinham feito a sua terra-mãe, era quase chocante ver o espanto que Holden demonstrava perante o progresso duma terra que ele tinha esperado encontrar primitiva e escravizada, árida e abandonada como a propaganda estrangeira proclamava. Como nota curiosa, posso revelar que perante uma barragem (das Mabubas) já colocada fora de uso por obsoleta e apta apenas a servir em curtos períodos de emergência de apoio à barragem (de Cambambe)que servia Luanda, vimos Holden abrir os olhos de espanto perante tão "extraordinária realização"...
Noutra ocasião, na Fazenda "Tentativa", Holden Roberto viu uma fábrica de açúcar também já ultrapassada por não ter capacidade de laboração para a matéria prima que ali se produzia e que por tal motivo estava para ser desmanchada. Era uma fábrica que eu conhecia desde menino. Pois Holden Roberto não escondeu o seu espanto perante a sua "grandiosidade"...
Talvez por tudo isso, e também porque ele podia verificar que muitos de nós conhecíamos Angola
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desde Cabinda ao Cunene e que todos amávamos aquela terra que queríamos que continuasse a ser também nossa, talvez por isso ele nos respeitava e nos dava todo o apoio que podia.
No entanto todo o esforço desesperado desses homens que quiseram defender Angola do inimigo soviético se perdeu.
Ingloriamente, diga-se. Por vil traição.
Tanto os angolanos como os portugueses acreditaram que os representantes do governo português honrariam os seus compromissos de imparcialidade tal como haviam sido assumidos em Alvor. Não o fizeram. É já um facto historicamente comprovado que o governo português apoiou, muito antes da data da independência, a invasão dos cubanos, checos, húngaros e russos em Angola, tal como aprovou e consentiu no estabelecimento de quartéis e na distribuição de armamento, desde o mais simples ao mais sofisticado, desde as armas ligeiras aos mísseis russos, os célebres "órgãos de Staline"...
Quem permitiu, quem sancionou, quem colaborou nessa monstruosa traição que veio a culminar na entrega de Angola e Moçambique ao colonialismo soviético?
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Muita gente me tem perguntado por que não entrámos em Luanda, quando a imprensa internacional chegou a noticiar que estávamos à vista da cidade do dia 10 de Novembro, precisamente no morro fronteiro ao Cacuaco. Este livro será uma resposta suficiente, embora muitos aspectos não possam ainda ser revelados.
Esses heróis que se chamaram Comandos Especiais fizeram tudo quanto puderam. Lutando com desespero contra o tempo, conseguiram de facto chegar à vista de Luanda antes da data da independência, levando de roldão à sua frente as sucessivas vagas de cubanos que se interpunham entre eles e a capital. Se a tivessem conseguido atingir antes do 11 de Novembro, tê-la-iam tomado, e não seriam as guarnições cubanas, inadaptadas para a guerrilha urbana, numa ci-dade que desconheciam e temiam, que o poderiam ter impedido.
Mas entraves de toda a ordem condicionaram a ofensiva sobre Luanda, desde o não consentimento de manobras de diversão ou alterações de frente, até ao atrasar sistemático do assalto à cidade na sequência da primeira arrancada que em 48 horas nos levou do Ambriz ao Caxito... para nos quedarmos mais de vinte dias sem gasolina.
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As pressões que se exerceram sobre Holden Roberto — constantemente mal esclarecido e enganado — no sentido de fazer coincidir o início do assalto com a véspera do dia marcado para a independência, funcionaram deliberadamente para que não entrássemos em Luanda. A artilharia abandonou as posições sem qualquer aviso e exactamente quanto mais dela carecíamos para o assalto ao Morro de Quifandongo o qual, uma vez tomado, abriria o caminho para a cidade em terreno plano e sem obstáculos.
Por tudo isto não ocupamos Luanda. Foi-nos retirado o apoio de fogo pesado dos dois obuses de 140, abandonados mais tarde em Ambrizete e transformados em massas de ferro inútil porque as suas guarnições — evacuadas de helicóptero — levaram as culatras...
Ali ficamos sob intenso fogo do inimigo. O barulho da onda de mísseis parecia uma terrível e contínua trovoada. Os Comandos Especiais ficaram colados ao terreno e impedidos de dar resposta.
Ali ficou só um punhado de Comandos Especiais no dia 10 de Novembro, véspera do dia fixado para a independência. Tudo havia retirado. Do nosso posto de observação sobranceiro à cidade que não havíamos podido alcançar, vi sair do porto
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de Luanda a fragata que levava as autoridades portuguesas.
Eram quatro horas e meia da tarde do dia 10 de Novembro de 1975.
Os Comandos Especiais olharam o silencioso afastamento daquela fragata que levava no convés apinhado de gente os últimos restos de uma presença de cinco séculos. As lágrimas de raiva e de impotência rolaram pelas faces dos Comandos que o sol de Angola curtira. A fragata lançou ferro no limite das águas costeiras e ali ficou parada até à meia noite. Num arremedo de macabra farsa, à meia noite em ponto, esse navio da Armada Portuguesa iluminou em arco e salvou a terra...
Depois, como que num silêncio de vergonha, fez-se ao largo".

Gilberto Santos e Castro.




                                      ¡ MEMÓRIAS VENERADAS DE OUTROS DIAS !

Soberbos monumentos do passado,
esplendores, relíquias frias ...
Donde a arte verteu as suas fantasias
donde a alma expressou as Glórias do teu passado
na tua bela História de outras idades lúcidas.
As ciências agrupadas em seus ombros te alçaram
ao mundo de olhos pasmados.
O Império que foste e que criações fizeste
foste pasmo e assombro das gentes.

Pátria minha... A lança que te feriu de morte
 foi tão rápida que pasma as nossas angustiadas mentes.
Vivemos anos de amarga traição
e amarguras tantas de servil humilhação!
Pátria desventurada levanta-te já 
da tua indolência extrema ...
Que é hora de redenção suprema!
Que o vão temor ganhe força ...
ao erguer das ruínas a bandeira das quinas
a bandeira verde-rubra, a bandeira da Nação !




Poema de, Rogéria Gillemans
¡ Registado no Ministério da cultura - Inspecção Geral das Actividades Culturais, I.G.A.C. – Processo N°3089/2009 !



Monumento aos Combatentes da Grande Guerra, tinha a seguinte inscrição 
"Portugal aos seus Combatentes europeus e africanos da Grande Guerra, 1914-1918". 
A escultura feminina representava a Pátria, os soldados os seus Valorosos Defensores.
(Monumento, também, conhecido como "Estátua da Maria da Fonte")



UM HERÓI PORTUGUÊS, RUI ALBERTO MAGGIOLO DE GOUVEIA.


                                              HOMENAGEM A UM HERÓI
                       TENENTE-CORONEL RUI ALBERTO MAGGIOLO DE GOUVEIA.


"«Viemos para aqui para morrer. Estamos prontos para morrer!» Foram as últimas palavras ouvidas do tenente-coronel do Exército Português, Rui Alberto Maggiolo de Gouveia, fuzilado pela Fretilin em Timor, com outros elementos da UDT, em finais de Dezembro de 1975.
Em Agosto, à causa da traição e cumplicidade da tropa criminosa de Abril com a Fretilin, juntara-se à UDT - "por amor a Portugal e a Timor", como disse -, pensando contribuir para evitar a invasão indonésia. "

Assim morrem os heróis. Assim morreu o tenente-coronel Rui Alberto Maggiolo de Gouveia. E, quem assim morre, é orgulho para os pais, para a esposa, para os filhos, para os portugueses de Lei e para a Pátria. Morreu como herói da Fé e da Pátria: e, desta forma, não é a morte que coroa a vida, é a glória eterna em Deus que sublima tal morte. E mais vale morrer com glória do que viver com desonra - eram desta têmpera os portugueses de antanho - foi a ideia-força na vida deste Homem, deste Cristão e deste oficial do Exército Português, Maggiolo de Gouveia. Se, como piedosamente cremos, ele continua a viver no Céu, junto de Deus, também viverá no coração dos timorenses enquanto a memória dos homens não se desvanecer. 



ANTES DE MORRER, CADA UM FAÇA A SUA ORAÇÃO !

"Em 12 de Agosto de 1975, o tenente-coronel Rui Alberto Maggiolo Gouveia foi à Rádio de Díli dizer que já não era comandante da Polícia de Segurança Pública e que abandonava o Exército Português. Porque aderira, "por verdadeiro amor" à verdade, a Timor e a Portugal, "ao movimento UDT", o partido que no dia anterior desencadeara uma acção militar.

A declaração é recebida com perplexidade pelos militares portugueses e enfurece a Fretilin que a 21 o prende e encarcera no Quartel-General em Taibesse. O governador português Lemos Pires ordena, uma semana depois, a saída dos militares metropolitanos para a ilha do Ataúro, donde
partirão em definitivo na manhã de 7 de Dezembro, início da invasão indonésia do território.

Maggiollo Gouveia é dado como desaparecido "em condições de grande perigosidade e de ameaça à ordem pública". Durante 11 anos. Após o que a família requere judicialmente a sua morte presumida. Desde há 11 anos que a viúva recebe pensão de sobrevivência e de preço de sangue.

Na tarde próxima segunda-feira, em Mação, o ministro da Defesa, Paulo Portas, e o novo chefe do estado-maior do Exército, Valença Pinto, prestam-lhe honras oficiais numa cerimónia fúnebre que a família pretende discreta.

PÚBLICO ontem o porta-voz do Estado-Maior do Exército (CEME), que está a organizar a cerimónia. Segundo o tenente-coronel Vasco Pereira, Maggiolo Gouveia terá um enterro de acordo com as "honras regulamentares", disse ao o antigo tenente-coronel terá "naturalmente direito" às honras de Estado a que "qualquer militar no seu posto" também teria - escolta militar e salva de tiros.


Entrevista do Jornal "O PÚBLICO", Quarta-feira, 13 de Agosto de 2003.
Pela primeira vez um dos Assassinos fala sobre a Execução do Oficial Português Maggiolo Gouveia.

Por Adelino Gomes.

O olhar fugidio, as palavras mal sussurradas denunciam o embaraço de L. (letra escolhida ao acaso, com intuitos óbvios de lhe preservar o anonimato) quando se senta na cadeira para a entrevista. As palavras queimam-lhe na boca, parece mais de uma vez à beira da desistência.
Chega, em dado momento, a deixar cair a sua identificação completa, número mecanográfico do Exército português (a quem serviu no contingente local entre 1973 e 1975) incluído. Mas logo cai em si e pede, uma vez mais, o anonimato. O seu nome enquanto elemento do pelotão que fuzilou o antigo chefe da polícia de Timor é conhecido por várias pessoas ligadas no passado à Fretilin. Mas esta é a primeira vez que aparece a assumir a participação dele próprio na acção. Num encontro a sós, mas que sabe se tornará público, porque é a um jornalista que faz o relato do que viu e fez em duas noites consecutivas, por alturas do Natal de 1975 na região montanhosa de Ai, Timor-Leste

P - Qual a sua função na Fretilin?

L - Era soldado-condutor.

P - Tinha estado no Exército português?

R - Sim. Fui da incorporação de 1973.

P - O tenente-coronel Maggiolo Gouveia esteve detido durante semanas e semanas em Díli, no Quartel-General e no Hospital. Quando é que o evacuaram para Aileu?

R - Antes da invasão indonésia [em 7 de Dezembro de 1975]. Não sei a data exacta.

P - Onde é que ficou?

R - No quartel [de Aileu] numa zona chamada Matadouro, ao pé do
Hospital.

P - Sabe se foi torturado durante esse tempo?

R - Voltaram a bater-lhe com chicote [como acontecera em Díli, pelo menos nas primeiras semanas após a sua prisão].

P - Houve algum julgamento?

R - Não. Membros do Comité Central [CC da Fretilin, partido que dominava Timor desde finais de Agosto e tinha em Aileu a sua zona de maior fidelidade] começaram a reunir-se para verem se podiam liquidar aquela gente toda.

P - Qual gente?

R - Os presos. Além do tenente-coronel Maggiolo Gouveia havia presos da UDT e da Apodeti.

P - Quantos?

R - Não sei. Muitas dezenas.

P - Quem eram os membros do CC que se reuniam?

R - José da Silva, Sebastião Sarmento, Adão Mendonça, furriel Gil Ribeiro, Domingos Ribeiro e M. [letra escolhida ao acaso, para representar o nome de uma figura da Fretilin ainda viva, ao contrário dos restantes, todos mortos durante a luta contra a Indonésia].

P - Nesses nomes que está a dizer há gente que não pertencia ao CC.

R - Havia também o Sebastião Montalvão, o Alarico Fernandes, o António Pinheiro e mais gente que já esqueci.

P - Quem dirigia então efectivamente o partido era Nicolau Lobato. Ele também participava nessas reuniões?

R - Não. Quando lhe contaram ele disse: "Nós podemos prender, mas não podemos matar".

P - Onde é que se reuniam?

R - Num bar.

P - Como é que você soube?

R - Mandaram-me chamar a casa, era de noite. Tinham estado a comer leitão assado e a beber cerveja, vinho, whisky. Diziam: 'Temos que acabar com aquela gente toda da UDT. E com o Maggiolo também'.

P - Quando aconteceu isso?

R - Não sei a data exacta, foi em Dezembro.

P - No princípio, no meio, no fim?

R - Pode ter sido por volta do dia 25. Eram umas onze da noite quando me chamaram. Fui ter com eles ao bar, deram-me de beber. Diziam: 'Temos que tomar conta disto. Não podemos deixar vivo o Maggiolo, se não amanhã ou depois o Maggiolo é que é presidente e nós sofremos na mesma".

P - O que é que lhe disseram?

R - Mandaram-me à prisão chamar o comandante. O primeiro cabo Pedro Aquino levava uma lista de uns 25. Foram chamando um a um. Formaram e depois conduzimo-los a pé para fora de Aileu. Atravessámos a ribeira e parámos junto de uma vala, num local chamado Aisirimu. Eu soube depois que a vala já estava aberta desde as três horas da tarde.

P - O que fizeram a seguir?

R - Eu disse-lhes: "Se têm coragem, fujam".

P - E alguns fugiram?

R - Não. O tenente-coronel Maggiolo respondeu: "Viemos para aqui para o buraco para morrer. Estamos prontos para morrer". Então eu disse: "Antes de morrer, cada um faça a sua oração".
P - E eles? Rezaram o terço em conjunto?
R - Não. Uns rezaram o "Pai nosso que estais no céu", outros fizeram o exame de consciência.

P - Rezaram alto?

R - Não, em silêncio.

P - E depois?

R - Mandei um tiro. Não sei se acertei ou não.

P - Além de si, quem eram os elementos do pelotão?

R - O 1º cabo Pedro Aquino e alguns soldados de um pelotão de milícias, da 2ª linha.

P - Qual dos prisioneiros morreu primeiro?

R - Não sei. Não quis ver o fim. Foram os milícias que os enterraram.

P _ A que horas foi a execução?

R - Fomos buscá-los à volta das 11 [da noite]. Deve ter sido às 24 horas.

P - Havia gente a assistir?

R - Sim.

P - O que é que disseram? Não estavam indignados?

R - O povo não disse nada, tinha medo.

P - Arnaldo Araújo [que veio mais tarde a ser governador de Timor, nomeado pela Indonésia] também estava preso em Aileu, ou foi deixado em Díli?

R - Estava em Aileu.

P - Como é que se explica que eles tenham executado Maggiolo Gouveia, um oficial português, e poupado Arnaldo Araújo, que era considerado pelos nacionalistas um dos maiores traidores da história de Timor pois tinha colaborado com o Japão, durante a Segunda Guerra, e agora liderava os integracionistas da Apodeti?

R - Aranaldo Araújo foi dos últimos [a serem executados]. O nome dele estava noutra lista que me deram no outro dia com gente da Apodeti. Estávamos a passar a ribeira, era de noite também, e eu disse-lhes: "Têm que fugir. Se não fogem, morrem".

P - E eles fugiram?

R - Só alguns. Desconfiaram. Mas o Arnaldo Araújo fugiu com o filho, Zeca, que veio mais tarde a morrer em Ainaro.

P - Como é que você, simples soldado, lhes dizia para fugirem? Não sofreu represálias depois?
R - Na altura eu ainda tinha voz para discutir com os comandantes.
Disse-lhes: 'Vocês mandaram-me fazer isto. Têm que tomar as [vossas] responsabilidades, amanhã ou depois'. Mas eles já foram todos para águas de bacalhau.
P - É estranho ter deixado fugir um homem que veio a ser governador pró-indonésio sem sofrer represálias dos que vos mandaram matá-lo.
R - O Arnaldo Araújo a seguir ainda gritou na rádio várias vezes o meu nome.
Dizia: "Vem-te render". Mas eu estava no mato e não fui. Ainda estive preso [pela guerrilha] três meses, chamaram-me traidor. [Os indonésios] Apanharam-me num abrigo em 1978. Fiquei seis anos na prisão".

Entrevista feita em 23 de Maio de 2003 em Díli no âmbito da preparação de um livro do autor sobre o primeiro ano da independência de Timor-Leste.





Rogéria Gillemans