"«Viemos para aqui para morrer.
Estamos prontos para morrer!» Foram as últimas palavras ouvidas do
tenente-coronel do Exército Português, Rui Alberto Maggiolo de Gouveia,
fuzilado pela Fretilin em Timor, com outros elementos da UDT, em finais de Dezembro
de 1975.
Em
Agosto, à causa da traição e cumplicidade da tropa criminosa de Abril com a
Fretilin, juntara-se à UDT - "por amor a Portugal e a Timor", como
disse -, pensando contribuir para evitar a invasão indonésia. "
Assim morrem os
heróis. Assim morreu o tenente-coronel Rui Alberto Maggiolo de Gouveia. E, quem
assim morre, é orgulho para os pais, para a esposa, para os filhos, para os
portugueses de Lei e para a Pátria. Morreu como herói da Fé e da Pátria: e,
desta forma, não é a morte que coroa a vida, é a glória eterna em Deus que
sublima tal morte. E mais vale morrer com glória do que viver com desonra -
eram desta têmpera os portugueses de antanho - foi a ideia-força na vida deste
Homem, deste Cristão e deste oficial do Exército Português, Maggiolo de
Gouveia. Se, como piedosamente cremos, ele continua a viver no Céu, junto de
Deus, também viverá no coração dos timorenses enquanto a memória dos homens não
se desvanecer.
ANTES DE
MORRER, CADA UM FAÇA A SUA ORAÇÃO !
"Em 12 de Agosto
de 1975, o tenente-coronel Rui Alberto Maggiolo Gouveia foi à Rádio de
Díli dizer que já não era comandante da Polícia de Segurança Pública e que
abandonava o Exército Português. Porque aderira, "por verdadeiro
amor" à verdade, a Timor e a Portugal, "ao movimento UDT", o
partido que no dia anterior desencadeara uma acção militar.
A declaração é recebida com
perplexidade pelos militares portugueses e enfurece a Fretilin que a 21 o
prende e encarcera no Quartel-General em Taibesse. O governador português Lemos
Pires ordena, uma semana depois, a saída dos militares metropolitanos para a
ilha do Ataúro, donde
partirão em definitivo na manhã de 7
de Dezembro, início da invasão indonésia do território.
Maggiollo Gouveia é dado como
desaparecido "em condições de grande perigosidade e de ameaça à ordem
pública". Durante 11 anos. Após o que a família requere judicialmente a
sua morte presumida. Desde há 11 anos que a viúva recebe pensão de
sobrevivência e de preço de sangue.
Na tarde próxima segunda-feira, em
Mação, o ministro da Defesa, Paulo Portas, e o novo chefe do estado-maior do
Exército, Valença Pinto, prestam-lhe honras oficiais numa cerimónia fúnebre que
a família pretende discreta.
PÚBLICO ontem o
porta-voz do Estado-Maior do Exército (CEME), que está a organizar a cerimónia.
Segundo o tenente-coronel Vasco Pereira, Maggiolo Gouveia terá um enterro de
acordo com as "honras regulamentares", disse ao o antigo
tenente-coronel terá "naturalmente direito" às honras de Estado a que
"qualquer militar no seu posto" também teria - escolta militar e
salva de tiros.
Entrevista do Jornal "O
PÚBLICO", Quarta-feira, 13 de Agosto de 2003.
Pela primeira vez um dos Assassinos
fala sobre a Execução do Oficial Português Maggiolo Gouveia.
Por Adelino Gomes.
O olhar fugidio, as
palavras mal sussurradas denunciam o embaraço de L. (letra escolhida ao acaso,
com intuitos óbvios de lhe preservar o anonimato) quando se senta na cadeira
para a entrevista. As palavras queimam-lhe na boca, parece mais de uma vez à beira
da desistência.
Chega, em dado
momento, a deixar cair a sua identificação completa, número mecanográfico do
Exército português (a quem serviu no contingente local entre 1973 e 1975)
incluído. Mas logo cai em si e pede, uma vez mais, o anonimato. O seu nome
enquanto elemento do pelotão que fuzilou o antigo chefe da polícia de Timor é
conhecido por várias pessoas ligadas no passado à Fretilin. Mas esta é a
primeira vez que aparece a assumir a participação dele próprio na acção. Num
encontro a sós, mas que sabe se tornará público, porque é a um jornalista que
faz o relato do que viu e fez em duas noites consecutivas, por alturas do Natal
de 1975 na região montanhosa de Ai, Timor-Leste
P - Qual a sua função na Fretilin?
L - Era soldado-condutor.
P - Tinha estado no Exército
português?
R - Sim. Fui da incorporação de 1973.
P - O tenente-coronel
Maggiolo Gouveia esteve detido durante semanas e semanas em Díli, no
Quartel-General e no Hospital. Quando é que o evacuaram para Aileu?
R - Antes da invasão indonésia [em 7
de Dezembro de 1975]. Não sei a data exacta.
P - Onde é que ficou?
R - No quartel [de Aileu] numa zona
chamada Matadouro, ao pé do
Hospital.
P - Sabe se foi torturado durante esse
tempo?
R - Voltaram a
bater-lhe com chicote [como acontecera em Díli, pelo menos nas primeiras
semanas após a sua prisão].
P - Houve algum julgamento?
R - Não. Membros do
Comité Central [CC da Fretilin, partido que dominava Timor desde finais de
Agosto e tinha em Aileu a sua zona de maior fidelidade] começaram a reunir-se
para verem se podiam liquidar aquela gente toda.
P - Qual gente?
R - Os presos. Além do tenente-coronel
Maggiolo Gouveia havia presos da UDT e da Apodeti.
P - Quantos?
R - Não sei. Muitas dezenas.
P - Quem eram os membros do CC que se
reuniam?
R - José da Silva,
Sebastião Sarmento, Adão Mendonça, furriel Gil Ribeiro, Domingos Ribeiro e M.
[letra escolhida ao acaso, para representar o nome de uma figura da Fretilin
ainda viva, ao contrário dos restantes, todos mortos durante a luta contra a
Indonésia].
P - Nesses nomes que está a dizer há
gente que não pertencia ao CC.
R - Havia também o Sebastião
Montalvão, o Alarico Fernandes, o António Pinheiro e mais gente que já esqueci.
P - Quem dirigia então efectivamente o
partido era Nicolau Lobato. Ele também participava nessas reuniões?
R - Não. Quando lhe contaram ele
disse: "Nós podemos prender, mas não podemos matar".
P - Onde é que se reuniam?
R - Num bar.
P - Como é que você soube?
R - Mandaram-me
chamar a casa, era de noite. Tinham estado a comer leitão assado e a beber
cerveja, vinho, whisky. Diziam: 'Temos que acabar com aquela gente toda da UDT.
E com o Maggiolo também'.
P - Quando aconteceu isso?
R - Não sei a data exacta, foi em
Dezembro.
P - No princípio, no meio, no fim?
R - Pode ter sido por
volta do dia 25. Eram umas onze da noite quando me chamaram. Fui ter com eles
ao bar, deram-me de beber. Diziam: 'Temos que tomar conta disto. Não podemos
deixar vivo o Maggiolo, se não amanhã ou depois o Maggiolo é que é presidente e
nós sofremos na mesma".
P - O que é que lhe disseram?
R - Mandaram-me à
prisão chamar o comandante. O primeiro cabo Pedro Aquino levava uma lista de
uns 25. Foram chamando um a um. Formaram e depois conduzimo-los a pé para fora
de Aileu. Atravessámos a ribeira e parámos junto de uma vala, num local chamado
Aisirimu. Eu soube depois que a vala já estava aberta desde as três horas da
tarde.
P - O que fizeram a seguir?
R - Eu disse-lhes: "Se têm coragem,
fujam".
P - E alguns fugiram?
R
- Não. O tenente-coronel Maggiolo respondeu: "Viemos para aqui para o
buraco para morrer. Estamos prontos para morrer". Então eu disse:
"Antes de morrer, cada um faça a sua oração".
P
- E eles? Rezaram o terço em conjunto?
R
- Não. Uns rezaram o "Pai nosso que estais no céu", outros fizeram o
exame de consciência.
P - Rezaram alto?
R - Não, em silêncio.
P - E depois?
R - Mandei um tiro. Não sei se acertei
ou não.
P - Além de si, quem eram os elementos
do pelotão?
R - O 1º cabo Pedro Aquino e alguns
soldados de um pelotão de milícias, da 2ª linha.
P - Qual dos prisioneiros morreu
primeiro?
R - Não sei. Não quis ver o fim. Foram
os milícias que os enterraram.
P _ A que horas foi a execução?
R - Fomos buscá-los à volta das 11 [da
noite]. Deve ter sido às 24 horas.
P - Havia gente a assistir?
R - Sim.
P - O que é que disseram? Não estavam
indignados?
R - O povo não disse nada, tinha medo.
P - Arnaldo Araújo [que veio mais
tarde a ser governador de Timor, nomeado pela Indonésia] também estava preso em
Aileu, ou foi deixado em Díli?
R - Estava em Aileu.
P - Como é que se
explica que eles tenham executado Maggiolo Gouveia, um oficial português, e
poupado Arnaldo Araújo, que era considerado pelos nacionalistas um dos maiores
traidores da história de Timor pois tinha colaborado com o Japão, durante a
Segunda Guerra, e agora liderava os integracionistas da Apodeti?
R - Aranaldo Araújo
foi dos últimos [a serem executados]. O nome dele estava noutra lista que me
deram no outro dia com gente da Apodeti. Estávamos a passar a ribeira, era de
noite também, e eu disse-lhes: "Têm que fugir. Se não fogem, morrem".
P - E eles fugiram?
R - Só alguns. Desconfiaram. Mas o
Arnaldo Araújo fugiu com o filho, Zeca, que veio mais tarde a morrer em Ainaro.
P
- Como é que você, simples soldado, lhes dizia para fugirem? Não sofreu
represálias depois?
R
- Na altura eu ainda tinha voz para discutir com os comandantes.
Disse-lhes:
'Vocês mandaram-me fazer isto. Têm que tomar as [vossas] responsabilidades,
amanhã ou depois'. Mas eles já foram todos para águas de bacalhau.
P
- É estranho ter deixado fugir um homem que veio a ser governador pró-indonésio
sem sofrer represálias dos que vos mandaram matá-lo.
R
- O Arnaldo Araújo a seguir ainda gritou na rádio várias vezes o meu nome.
Dizia:
"Vem-te render". Mas eu estava no mato e não fui. Ainda estive preso
[pela guerrilha] três meses, chamaram-me traidor. [Os indonésios] Apanharam-me
num abrigo em 1978. Fiquei seis anos na prisão".
Entrevista
feita em 23 de Maio de 2003 em Díli no âmbito da preparação de um livro do
autor sobre o primeiro ano da independência de Timor-Leste.
Rogéria Gillemans