Para situar um pouco no tempo a acção do
Governador em Angola. É elucidativo das dificuldades e do
sofrimento na versão que se segue respigada dum relatório do Chefe do
Posto, Hermínio Carvalho de Sena, que teve nas suas mãos a sorte dos habitantes
da povoação de Mucaba.
«A noite de
vinte e nove de Abril foi longa e tormentosa. Chefe do Posto e
habitantes da povoação tiveram a vida por um fio. Nessa noite amargurada, foi o
corolário dum martírio incessante, que se prolongou por muitos meses. Para uma
melhor compreensão, registam-se os passos anteriores a ela e também os que se
sucederam.
A excitação
nos povos do norte de Angola começou muito antes de quinze de Março de 1961,
data do rebentamento do terrorismo. A independência do antigo Congo Belga,
ocorrida em Junho de 1960, acelerou nas populações fronteiriças o desejo de
imitação. Por essa altura, quando o Chefe do Posto regressava do Posto de 31 de
Janeiro, deparou com um movimento anormal, perto da Regedoria de Tolane, tida
como de confiança.
O Regedor,
todo ele alterado, mal responde às perguntas que lhe são feitas. Declara
de motu próprio que "o Chefe do Posto será morto e ele,
Regedor, será o Rei de Mucaba". Depois disto, várias diferenças começam a
ser notadas: ordens do Chefe do Posto mal cumpridas, fugas de pessoal das
fazendas de café, saídas exageradas de gente para o Congo ex-Belga. As
suspeitas acumuladas levam o Chefe do Posto, de parceria com elementos da
população, a organizarem um serviço de patrulhamento, desde o apagar das luzes
até às cinco da manhã, que começa no dia catorze de Julho de 1960. Nesse dia
chega a notícia de o Regedor Tolane ter abandonado a residência para se
internar na mata.
O
patrulhamento prossegue nos meses de Agosto, Setembro, Outubro e entra pelo
Novembro adentro. A treze deste mês, na deslocação do Chefe do Posto à
Regedoria de Tolane, não encontra o
Regedor, nem a Bandeira Nacional içada, como era costume aos domingos e dias
feriados. No dia vinte e um realiza-se a cerimónia da transferência do Posto
Administrativo do Mucaba, do Concelho da Damba para a jurisdição do Concelho do
Songo, com a presença dos Administradores daqueles Concelhos, Autoridades
tradicionais e elementos da povoação comercial.
Os meses de
Dezembro de 1960 e Janeiro de 1961, passam sem manifestações hostis. No dia
vinte e nove de Janeiro, o Chefe do Posto conferencia com os Sobas da região,
tendo em vista os trabalhos para a construção duma picada destinada a ligar o
Posto com o Songo, sede do Concelho. Os Sobas cumprem e a abertura da picada
começa sem incidentes. O mês de Fevereiro é todo dedicado a esta tarefa, apesar
de chegarem notícias do recrudescimento das fugas de pessoal das fazendas de
café.
No domingo,
doze de Março, o Chefe do Posto faz nova diligência à Regedoria de Tolane.
Regista outra vez a ausência do Regedor e da Bandeira Nacional no poste da
Regedoria. Nas buscas efectuadas nada apura sobre o seu paradeiro. Dois dias
depois volta a andar por vários povos, em serviço de fiscalização. Não regista
distúrbios. Mas o ambiente observado é opressivo. Na volta à povoação decide
activar o patrulhamento.
No dia
quinze, o Chefe do Posto organiza uma patrulha, composta de civis, soldados com
baixa e cipaios, que marcha sobre os povos de Uando, à procura do Regedor
Tolane. Ninguém dá notícias dele. Pela tarde, informado por um comerciante, toma
conhecimento das chacinas feitas no Quiteche, Aldeia Viçosa, Vista Alegre e
fazendas de café na área do Uige. A fogueira que arde um tanto por todo o
território não atinge Mucaba. No dia seguinte promove uma reunião com os
comerciantes e pessoal do Posto, na qual dá conta da situação e em conjunto,
traçam uma linha de conduta.
Em
consequência, melhoram os processos de fiscalização, ao mesmo tempo que os
comerciantes tomam o compromisso de não venderem catanas, nem machados, facas e
pregos. Entretanto, os trabalhos da construção da picada continuam em bom
ritmo. Mas o Chefe do Posto, insatisfeito com o silêncio dos povos da sua área,
no dia dezassete vai observar pessoalmente. Nada acontece de anormal. Todavia,
continuam a chegar notícias de alastramento do terrorismo nas terras do Norte.
Como medida
de precaução, no dia dezanove são evacuadas para Luanda, via Engage, as
senhoras e as crianças, ficando só os homens. O serviço de vigilância é
redobrado, com turnos de ronda, permanentes, dia e noite. Os elementos da
população concentram-se em duas residências, uma em cada extremo da povoação.
A vinte e
três, o chefe do Posto percorre a zona de Uando e não encontra nos povos nenhum
Soba presente. Entretanto os trabalhos da picada chegam ao seu termo e o Chefe
do Posto segue por ela ao Songo e dali a Carmona (Uige), aonde se inteira da
gravidade dos acontecimentos. Em trinta e um de Março a picada é dada por
concluída e o pessoal transferido para o Posto, em serviço de limpeza da
povoação. Apesar dos acontecimentos o serviço decorre sem incidentes. A onze de
Abril, o Chefe do Posto sai com o pessoal à picada Mucaba-Songo, a rectificar
um troço de trânsito difícil.
No dia quinze
são reforçadas as patrulhas e as rondas. A população dá sinais de cansaço, mas
decidida a andar por diante com as tarefas de defesa. Como medida de precaução,
o Chefe do Posto manda recolher ao Posto o pessoal em serviço nas fazendas de
café, proprietários e empregados. No dia dezanove, utiliza o pessoal regressado
da picada para começar a preparar uma pista de emergência para aterragem de
aviões.
Ao anoitecer
regressam as brigadas de fiscalização que haviam seguido para os lados do
Uando, com dois feridos e um morto. Trazem recado dos sublevados que diz:
"Esta terra é nossa! Não queremos Chefe do Posto, nem brancos!" No
dia seguinte segue nova diligência em busca do Regedor Tolane, em vão.
Ninguém dá conta do seu paradeiro. A situação torna-se perigosa. Os
amotinados da Serra, do lado do Posto do Bungo, atacam uma carrinha que se
deslocava naquela área, em serviço de observação, com oito ocupantes. Resultado: dois feridos
e a viatura crivada de balas.
A situação é
tensa, os meios de defesa escassos... O Chefe do Posto manda carta ao
Admnistrador do Concelho do Songo a dar parte do acontecido e a pedir, mais uma
vez, os reforços que nunca foram enviados, um emissor P-19 e uma avioneta para
evacuar os feridos. Pelos elementos capturados, sabe-se que há concentrações
para ataque à povoação, à espera do "vento" que há-de vir do Congo
ex-Belga para se lançarem ao assalto.
A população
passa a concentrar-se toda numa só residência, durante a noite, em estado de
alerta. O Chefe do Posto deixa a sua residência e junta-se à população para a
luta que se aproxima. São poucas as armas para a defesa: algumas espingardas,
de bala e caçadeiras, umas poucas de pistolas e uma pistola metralhadora. As
munições oscilam entre seis e sete mil tiros. A comunicação com o exterior
faz-se mal, por se ter avariado o emissor P-19. As pessoas acusam um estado de
mal-estar, ressentidas de tantas noites perdidas quase sem repouso.
Numa das
constantes rusgas efectuadas nos povos, é capturado o Regedor Tolane que, antes
de se entregar, destrói pelo fogo os documentos que tinha em seu poder. Ao
interrogatório nada responde. Diz somente que "ele é dono da terra de
Mucaba". No dia vinte e quatro de Abril o Chefe do Posto vai a Carmona
(Uíge) fazer a sua entrega à Administração daquele Concelho e de outros
sublevados capturados.
Das
diligências efectuadas para melhorar o poder de fogo, não consegue senão seis
caixas de cem cartuchos para caçadeira. Os dois enviados aos povos que não
tinham regressado, aparecem à noite, feridos, um deles em estado grave. Dão a
notícia de os terroristas terem matado as crianças mestiças que viviam nos
povos. O Chefe do Posto, sem perda de tempo, vai ao povo Lunda e salva uma
menina mestiça, de oito anos, que vivia com a mãe naquele povo, perto da
povoação comercial.
Em vinte e
cinco de Abril fica concluída a pista para aterragem de aviões. A prever a
necessidade de utilizar a Capela como reduto de defesa, o pessoal disponível é
aplicado na abertura dum fosso em sua volta, como nas fortalezas de outros
tempos. Ao entardecer uma coluna mista, composta de militares e civis,
proveniente do Engage, chega à povoação, depois de vencer inúmeros obstáculos
postos na estrada pelos terroristas.
É portadora
de algumas espingardas e munições, ajuda que é recebida com muito agrado.
Fica-se a saber por ela que as estradas de ligação com o Posto de Mucaba se
encontram todas cortadas. No dia 26 vêem-se sinais luminosos toda a noite.
Durante o dia engrossam as concentrações de gente. Agora as patrulhas estão
limitadas à povoação, porque a saída para fora é perigosa.
Neste dia a
Força Aérea, baseada no Engage, multiplica as suas acções na Serra de Mucaba e
nas áreas limítrofes de Damba, 31 de Janeiro e Bungo. Na esperança de serem
atendidos por algum dos aviões que sobrevoam a povoação, os defensores de
Mucaba, com cal e tiras de pano crú, escrevem no chão a pedir socorro, porque
há feridos para evacuar e têm o P-19 avariado. Pela tarde aterra na pista, pela
primeira vez, um avião Dornier, pilotado pelo Tenente-aviador
Negrão, que entrega um P-19 e correio, dá notícias. Confirma o facto de as
estradas estar em cortadas e as concentrações dos sublevados em volta da
povoação.
Em toda a
noite ninguém dorme, com a preocupação do ataque que possa ser desencadeado dum
momento para outro. Pela manhã apresentam-se três nativos, do povo perto da
povoação, serventes dum comerciante feridos, um deles em estado grave. Dão a
notícia de os terroristas terem matado o Soba do povo Lunda, por não querer
aderir à rebelião. Notícias captadas do Posto de 31 de Janeiro, dão como certo
o ataque ao Posto de Lucunga e confirmam o desaparecimento do Chefe do Posto,
cabo verdeano, Manuel Coutinho.
A população
exausta, em estado de desespero, decide abandonar a povoação e começa a atirar
para as carrinhas as coisas necessárias à viagem. O chefe do Posto, revestido
de paciência, pede-lhes que suspendam o gesto e fala-lhes ao coração:
"Sempre que precisastes de mim nunca deixei de estar convosco e de vos
ajudar. Houve sempre entre nós um verdadeiro espírito de camaradagem..."
Com este
intróito entreolham-se. O Chefe do Posto prossegue:
"Na
hora presente dá-se precisamente o contrário. Eu é que preciso de vós, do vosso
apoio e colaboração, porque sozinho nada poderei fazer aqui senão aguardar que
os rebeldes me matem. Eu não abandonarei nem o Posto nem a população que me
foram entregues e o mínimo que me poderá acontecer é ser chacinado como o foi o
meu colega do Posto de Lucunga!..."
Os rostos dos
comerciantes dão sinal de comoção. O Chefe do Posto continua:
"Qualquer
saída nesta altura, com as estradas cortadas e inutilizadas, seria um autêntico
suicídio!...
"Um
deles contestou: "Ficar para quê? Para morrermos todos? A nossa resposta é
não!"
O Chefe
do Posto insiste: "Vamos defender-nos dentro da Capela, numa força unida,
em verdadeiro espírito de camaradagem, lutarmos até ao fim, em defesa das
nossas vidas e desta terra de Mucaba!”
Eles hesitam.
Por fim decidem ficar. Lançam-se então, todos, na preparação da Capela, a fazer
do seu interior uma fortaleza. Carreiam para lá todo o preciso. Como alimentos
de consumo imediato, pão, conservas, água, vinho, medicamentos, fósforos,
velas, colchões, cobertores e tudo quanto lhes parece indispensável.
Como
complemento armam barricadas e andaimes em volta das paredes e preparam-se para
aguentar a borrasca que se aproxima. No dia vinte e oito passam a noite em
claro. No arraial terrorista persistem os sinais luminosos, que prenunciam
acção iminente. E os reforços, pedidos com insistência, nada de chegarem!...
Vinte e nove
de Abril é um dia sem fim para os defensores de Mucaba, enclausurados na Capela
da povoação. A excitação começa de manhã, com a movimentação dos sublevados,
que avançam em grandes grupos. Acabam-se as dúvidas. O momento do embate
aproxima-se. Avistam-se já os primeiros grupos entre cinco e sete
quilómetros.
O Chefe do
Posto, sob pressão, expede uma mensagem ao Governador do Distrito a dizer:
- Tenho honra
informar V.Ex.ª durante dia e noite ontem foram avistados sinais terroristas
concentrados volta população pelo que população se manteve sempre firme
vigilância ponto qualquer pessoa indígena ou não homem ou mulher sai povoação é
logo caçada e espancada ou morta ponto Os trinta defensores povoação estão
reunidos edifício Capela não podendo sair qualquer lado virtude todas vias
comunicação cortadas ponto Peço licença para lembrar V. Ex.ª que esta população
não é digna de ser abandonada à mercê da sorte porquanto ela deu sobejas provas
patriotismo e coragem sempre vigilante dia e noite já vai para dois meses ponto
Estamos fisicamente baixa forma pouco mais podendo fazer a manter-se esta
situação ponto Se reforços muitas vezes pedidos não forem enviados já vírgula
amanhã ou depois será tarde ponto.
Pelas quinze
horas aparece um avião no ar, o Dornier que faz sinais de
querer aterrar. As condições atmosféricas são péssimas. Mas o Tenente-aviador
Negrão, apesar do perigo, faz-se à pista e pousa sem novidade. A avioneta traz
um furriel, com uma pistola metralhadora e um soldado com uma espingarda. Nada
mais!... Pouco depois aparecem mais duas avionetas, que não aterram por causa
das más condições do tempo. Estas avionetas transportavam elementos duma secção
militar com as respectivas armas e munições... Pouca sorte!...
Cerca das
dezassete horas uma avioneta, pilotada pelo engenheiro Pereira Caldas, sobrevoa
a povoação e lança uma garrafa contendo uma mensagem que diz ter avistado
grupos de terroristas armados, cerca de cinco quilómetros a caminho da
povoação. Os defensores de Mucaba correm e encerram-se na Capela. Para melhor
compreensão do que se passa no exterior, organizam uma patrulha, formada por
duas viaturas, levando cada uma oito ocupantes. Numa vai um soldado e na outra
um furriel e um soldado.
Sob o comando
do furriel Demony Vieira, as viaturas marcham ao encontro do inimigo. Não tarda a
dar-se o desastre. A viatura da frente cai numa cilada e sofre um violento
ataque, do qual resulta a chacina de cinco ocupantes. A outra escapa por
milagre. O condutor revestido de sangue frio, retira de marcha atrás e chega
ileso à povoação com os sobreviventes. Agora os campos estão extremados. Nada
mais há a fazer senão a defesa das suas vidas. O soldado que havia sido
capturado pelos amotinados consegue fugir e apresenta-se na Capela. Entra por
uma janela, em escada que lhe é lançada de dentro.
Metidos todos
na Capela, estão agora de portas trancadas, posições tomadas e nervos tensos.
Pelas dezassete horas e meia os sublevados iniciam o ataque, ao som de cânticos
guerreiros e guinchos arrepiantes. Vozes de comando incitam: "Não tenham
medo!... As balas dos brancos são como água!...Não matam!..."Trocam-se
tiros entre atacantes e defensores. A luta ganha intensidade e entra pela noite
adentro. Com o receio de esgotarem as munições os defensores
abrandam o ritmo do fogo. De olhar atento, apontam com maior eficácia.
As luzes da
rua, acesas, permitem ver os movimentos do inimigo. Na Capela para reduzir a
visibilidade, acendem-se apenas duas velas. Os defensores, fora de si dão
sinais de ânimos exaltados. No auge do combate há quem reze!...Cada um evoca o
Santo da sua devoção!...Pelo emissor P-19 o Chefe do Posto lança para o ar
pedidos de socorro: ”Não dispomos de recursos para resistir” Durante muito
tempo ninguém dá sinal de entendido. Só a partir das vinte e duas horas chegam
algumas respostas:"Aguentem, tenham coragem!..."
A voz da
Capela repete os apelos: "As nossas munições estão quase no fim!...
Mandem-nos aviões!... Eles são muitos!... Parece nascerem do chão.'... As
nossas vidas estão em perigo!... Já não aguentamos mais!...Ajudem-nos!..."
O ambiente é infernal!...
Os aviões
roncam no ar mas não conseguem vencer a cortina de nevoeiro. Pela madrugada
dá-se uma baixa entre os defensores. Eugénio Veríssimo sucumbe, atingido por
carga mortífera. A comoção abate por momentos os ânimos, que depressa se
recompõem. O tiroteio prossegue, intenso!... No extremo do desespero, o tempo
parece que não anda!...
Para cúmulo,
a bateria do P-19, descarregada, não permite a comunicação com o exterior... Só
a intervalos regulados dá para emitir mensagens curtas! "Pedimos
socorro!...O inimigo está a aproximar-se!... Só lhe falta atingir as portas da
Capela!..." Chegam palavras de alento, de todos os lados.
Santo António
do Zaire anima: "Aguentem até chegar a Força Aérea já em marcha."
Outras vozes acodem com palavras de amizade e de solidariedade. Roncam aviões
no ar, que não actuam porque a densidade do nevoeiro não deixa ver nada.
Os defensores
estão exaustos. Não comem há muito tempo, não dormem, não têm um momento de
pausa!... Pela madrugada põem uma mensagem no ar que julgam ser a última,
dirigida a todos quantos os têm acompanhado no transe por que estão passando:
"Estamos irremediavelmente perdidos!... Já não temos munições!... O
inimigo está próximo das portas da Capela!... Vamos morrer!... Mas combateremos
até à última gota de sangue!... Salvem-nos por amor de Deus!..."
De fora não
cessam as palavras de estímulo, que nada adiantam. A situação é trágica!... O
P-19 entra em descanso para não esgotar a fraca carga da bateria!... A
resistência enfraquece!... Não há munições!... O inimigo entusiasma-se com a
vitória que tem nas mãos. Destaca elementos que, às corridas, vão buscar
bebidas às casas comerciais. Na volta exibem-se com gritarias estrondosas.
Agora atacam em força, com armas de bala, canhangulos e até com pedras!...
Os
resistentes, pelas seis da manhã, experimentam o P-19. Lançam no ar o
derradeiro apelo: "Já não há munições!...Só nos resta combater à baioneta
se o inimigo arrombar as portas da Capela!... Morrer ou sobreviver é a sorte
que nos espera!..." Tomam entre si uma resolução extrema: para não caírem
vivos nas mãos do inimigo, dispõem-se a morrer, sim, mas abatidos pelas armas
que reservam para o efeito!...
Pouco depois
o avião PV-2, comandado pelo Tenente-Coronel Diogo Neto, Comandante do Grupo
Operacional do B.A-9, rompe a cortina de nevoeiro e faz vôo rasante em volta da
Capela!... Sobre os terroristas lança bombas e metralha, e persegue-os, em
fuga, pela estrada além!... Esta acção, providencial, levanta o ânimo dos
resistentes!... Os homens de Mucaba estão salvos!... Dos seus corações brotam
hinos de alegria!...Nos rostos há sinais de comoção!... E aliviados e
maravilhados, reentram na vida, que já tinham por perdida!...
E para que a
Capela não seja bombardeada, na persuasão de que tenha caído em poder dos
terroristas, os resistentes destelham um canto da cobertura e com pano branco,
dão sinais de ainda estarem vivos. Por algum tempo conservam-se na Capela, à
espera que haja a certeza de não existirem terroristas à espreita. Na rua
principal surge a figura do cozinheiro do Posto, Viegas, de braços levantados,
em corrida para a Capela. Teve noite tormentosa, com as duas mulheres e filhos,
a tremerem de medo.
Entra mais um
mestiço, carpinteiro, com uma menina de três anos ao colo, baleada pelo
inimigo, que falece pouco depois. E chegou o momento de saírem!...Os
resistentes abrem as portas da Capela!... Comovidos, voltam enfim a pisar terra
chã!...Persiste ainda na mente o pesadelo da noite longa!... Sentem ainda no
corpo o desgaste da corrosão!...
No seu íntimo
conservam o historial de meses consecutivos de sobressaltos, de vigílias, de
noites mal dormidas!... A tormenta passou!... Que seja glorificado o
Tenente-Coronel Diogo Neto, o salvador, o que se sujeitou a perder a vida para
salvar a dos resistentes!...Eles estão salvos, depois duma fogueira de tantas
horas, a balancearem entre a vida e a morte!... Agora estão ali, emocionados, a
respirar o ar da felicidade!...
Os que tinham
ficado de fora e escaparam, juntam-se a eles. Não aparece o cabo dos cipaios,
chacinado, por ter deixado o esconderijo inicial para ficar nas dependências do
Posto. Os resistentes correm ao local mas não encontram senão fragmentos:
pernas para um lado, braços para outro, corpo espezinhado, cabeça
esborrachada!...A marca odiosa do terrorismo...
Pelas treze
horas vários aviões sobrevoam a povoação. Algumas avionetas aterram.
Desembarcam jornalistas, fotógrafos e visitantes. Querem ver os resistentes.
Querem ouvi-los, fotografá-los, abraçá-los... Do Governador-Geral de Angola
chega uma mensagem do teor seguinte:
"Acabais
de praticar um dos mais belos feitos da nossa História ponto Angola inteira
recordará os heróis civis e militares de Mucaba e venerará sempre a memória dos que tombaram no campo da honra ponto Viva
Portugal ponto."
Governador.
O dia 20 é de
encantamento para os resistentes de Mucaba. Atordoados, semi-inconscientes, com
o lance dilemático de matar para não morrer, a pesar na mente, passam as
primeiras horas fora de si. Deambulam sem itinerário, revêem os lugares por
onde andaram, localizam os estragos feitos pelos terroristas, tudo isto sem
destino nem objectivo. Parecem uns estranhos em meio estranho!... Pelas
dezassete horas chega uma coluna mista de militares e civis, proveniente do
Engage, com os socorros!...
Só agora
porquê? A coluna teve a sua odisseia!... Os seus componentes devem ser
glorificados, como campeões da coragem e da determinação! Os trabalhos por que
passaram!... Luta para removerem os obstáculos postos na estrada, luta para se
defenderem contra os ataques dos terroristas luta para trabalharem sem
luzes!... Um inferno de dificuldades, de impedimentos. de contrariedades!...
Foi precisa muita firmeza e força de vontade para avançarem até ao destino! As
baixas sofridas dão uma ideia da violência do fogo: três mortos e dois feridos,
evacuados todos de avião para Luanda.
Os reforços
militares recebidos aliviam a tensão dos resistentes. As munições de boca
despertam o apetite e quebram o jejum que vem do dia anterior. Entretanto
chegam mais mensagens, mais visitantes, com palavras de amizade, de admiração,
de solidariedade... Os resistentes despertam para a vida, aplaudidos,
enaltecidos, acarinhados. Ao entardecer, com a presença do Redactor do Jornal
do Congo, Sousa e Costa, levam a enterrar, nas traseiras da Capela,
os companheiros de luta: Eugénio da Saudade Veríssimo, António da Costa
Fernandes, Luís Ribeiro e Sebastião Malungo e ainda a menor de três anos.
O mês de Maio
prenuncia melhor resposta para os ataques esperados. Os militares presentes,
com armas e munições, reforçam o espaço de segurança. Na povoação mantém-se o
estado de vigilância e o patrulhamento da área periférica. Descobre-se então
uma novidade: a pouca distância da Capela encontram-se recipientes com gasolina
e petróleo, que os terroristas destinariam a incendiar a Capela. Estes
combustíveis e mais os que existiam nos armazéns da povoação, são enterrados em
valas abertas perto da Capela. Agora é um soldado nativo, recuperado,
que chega e dá notícia de os terroristas estarem a preparar um novo ataque, com
maiores efectivos. Para os receber condignamente o alferes Sousa e Silva pede
da Base o envio duma metralhadora MATSEM e munições. Do exterior continuam a
chegar manifestações de simpatia e de apoio. Uma avioneta da Empresa de Cobre
de Angola lança em pára-quedas, bacalhau, mariscos e bebidas, com uma mensagem
a dizer:
"Caro
Sena dois pontos É o teu patrício Edgar Vahnon que daqui do avião renova os
seus votos de muita admiração pela coragem e indómita bravura de que destes
mostras.Teu pai - velho Henrique Sena - ficaria bem orgulhoso. Abraço e até
breve ponto."
As iguarias
caídas do céu lembram aos resistentes os alimentos que têm na Capela. Como
corolário, confeccionam uma refeição de festa. Depois, promovem o enterramento
dos inúmeros terroristas mortos na refrega. E a vida retoma o seu curso
natural. Seguem-se dias de expectativa, à espera do anunciado ataque. Os
resistentes passam o dia na rua. Ao anoitecer recolhem à Capela, onde continuam
com o serviço de alerta, agora beneficiado com treze militares armados de
pistolas-metralhadoras.
No dia dez de
Maio os terroristas desencadeiam o ataque, pelas três e meia da manhã. A
neblina que escurece o espaço favorece o seu avanço. Só puderam ser vistos
muito próximo da Capela. O fogo nutrido com que são recebidos surpreende-os.
Põe-nos em fuga desordenada, sem tempo para levarem os dez mortos que deixam no
chão. Na debandada, vingam-se, raivosos, derrubando a antena do emissor P-19,
arrombando residências e estabelecimentos comerciais. Se o plano era o de
lançar fogo à população, ficou gorado. Não encontraram o combustível com que
contavam. A este revés inesperado junta-se outro, o da Força Aérea que
intervém, vigorosamente e desenvolve grande actividade em volta da povoação.
No dia treze
de Maio, a pedido da população, cansada de tanto sofrimento, o Chefe do Posto
expede uma mensagem ao Governador do Distrito, a agradecer todas as
providências tomadas para a defesa de Mucaba e a pedir que lhes sejam facultados
meios para defenderem os seus haveres, pedindo também o regresso às suas casas
dos habitantes de Mucaba ausentes em Luanda.
Nos rostos
dos resistentes há sinais de debilidade. As apreensões sem conta, as pressões
da luta, as noites de vigília, a insuficiência alimentar, tudo isto corro e as
energias e seca as fontes da vitalidade. Os sublevados, por seu lado, não
desistem. Mantêm o cerco à povoação e a ameaça de invasão. A situação de perigo
leva o Chefe do Posto a enviar ao Governador do Distrito a mensagem seguinte:
"Informo
V.Ex.ª população civil exausta precisa repouso pelo que necessário se torna
envio urgente mais tropa virtude a existente ser insuficiente defesa povoação
ponto Situação agrava-se momento a momento pois terroristas concentrados já
muito próximo ponto.
Apesar dos
desaires sofridos o inimigo persiste na sua luta. Não se vislumbra trégua
próxima. Pelo contrário, reagrupa-se e prepara novas investidas. Para os
resistentes é o estado de tensão que se prolonga. No dia dezasseis enviam nova
mensagem ao Governador do Distrito a dizer:
"
Informa-se ter sido proveitosa a acção aérea aqui desenvolvida ontem pelos
bombeiros e aviâo Aéro-Clube de Carmona ponto Agradecemos providenciar remessa
urgente gasóleo pois existência só para seis dias ponto."
No dia
seguinte os resistentes manifestam a sua preocupação pelo estado de
depauperamento em que se encontram. O Chefe do Posto em nome deles envia ao
Governador do Distrito a mensagem do seguinte teor:
"Vencida
já mais uma fase difícil da nossa vida na defesa deste rincão bem português e
melhorada em parte nossa situação com a presença de militares ouso fazer a Sexa
Governador Geral por intermédio Vossa Excelência o pedido seguinte dois pontos
De entre os valorosos e destemidos portugueses que me acompanharam corajosa e
incansavelmente na defesa de Mucaba contam-se onze casais cujas esposas tal
como acontece com a do signatário se encontram ausentes em Luanda desde
dezassete de Maio último aflitos com corações amargurados devido não só acontecimentos
desenrolados como também e principalmente pelos boatos que circulam Luanda
ponto Não deixaria de ser justa recompensa proporcionar a esses heróis que me
ajudaram a oportunidade de abraçar as esposas e os filhos para o que o Governo
lhes facilitaria uma ida a Luanda por quatro ou cinco dias incluindo um dia
para ido outro para regresso garantindo-lhes a viagem também por via aérea
ponto No caso de ser possível satisfação pedido poderiam seguir em grupo de
três ou quatro de cada vez não sendo de permitir que grupo seguinte saísse sem
primeiro regressar o anterior ponto."
A satisfação
dada ao pedido permite a saída dos primeiros resistentes em menos duma semana.
Gratos por se sentirem acarinhados pelas Autoridades Superiores, transmitem
para Luanda, com pedido para ser radiodifundido pelas emissoras da Província, a
mensagem seguinte:
" População
Mucaba representada pelo Chefe do Posto Hermínio Carvalho de Sena expressa
através da rádio o seu eterno e muito sincero reconhecimento a todos os que
acompanharam e com ela sofreram e se lhes dirigiram em cartas telegramas e até
ofertas nas horas amargas difíceis e inesquecíveis na sua epopeia ponto."
O dia dezoito
é assinalado com uma surpresa agradável para o Chefe do Posto. O avião do
Aéro-Clube de Carmona (Uíge) aterra na pista e trás a bordo o Chefe do Posto
Menezes para substituição. A sua chamada a Luanda tem por fim a condecoração
com a medalha de ouro de Serviços Distintos e Relevantes no Ultramar e a
promoção por distinção à categoria de Administrador de Circunscrição de
terceira classe.
A justiça
mais que merecida, sensibiliza o Chefe do Posto Sena, que não consegue dominar
a comoção que o invade. Ele esperaria, no seu íntimo, alguma coisa no género,
em reconhecimento ao esforço dispendido, superior à capacidade humana de
resistência, mas sem tempo definido. Chega, afinal no momento exacto em que já
sente, também ele, o desgaste inelutável da erosão. Bem-haja a providência
oportuna, que proporciona o prémio certo no tempo certo!...
Pela tarde,
ele abraça os companheiros da desdita, um a um e segue a cumprir o seu destino.
Em Luanda, em meio de festas, de aplausos, de louvores, de honrarias, não se
esquece dos seus companheiros de luta. Conserva-os bem na memória e envia-lhes
a mensagem seguinte:
"Gloriosa
população Mucaba cuidado Chefe do Posto - Nesta hora inesquecível em que sou
alvo vibrantes manifestações simpatia ponho em vós o meu pensamento endossando
integralmente todas homenagens que são mais vossas que minhas pois sem vós a
epopeia de Mucaba não seria um facto ponto Afectuosos abraços ponto."
Seguido o
relatório fielmente, nos passos afectos ao caso de Mucaba, seria um acto de mau
gosto acrescentar seja o que for ao texto original. Por fim resta saudar o
Homem determinado que fez das fraquezas forças e puxou dos resistentes até ao
ganho da batalha. O Chefe do Posto, medalha de ouro, promovido a
Administrador de Circunscrição, Hermínio Carvalho de Sena.
Hermínio Carvalho de Sena
RELAÇÃO DOS
DEFENSORES DE MUCABA
1- Abel Arlindo Vicente
2- Abílio Dias
3- Adelino Afonso
4- Alexandre Luiz
5- António Nunes Jerónimo
6 - António Nunes Medeiros
7 - António dos Santos
8- António Serafim Bráz
9- Artur Moutinho Sequeira - Ferido no 1º encontro na estrada.
10- Cláudio de Almeida - Morto no 1º encontro na estrada.
11 - Domingos José Bráz
12- Eduardo Teixeira
13 - Eugénio da Saudade Veríssimo - Morto durante o ataque na Capela
14- Fernando Ribeiro Dias
15 - Francisco Alves de Pinho
16- Hermínio Carvalho de Sena
17- João Carvalho
18 - João Medeiros Jerónimo
19 - Joaquim Silvestre
20- Joaquim Dias
21 - Joaquim da Silva Ramos - Morto no 1º encontro na estrada.
22 - Jorge de Oliveira
23 - Jorge de Meio Pereira
24 - José Alves Moreira - Morto no 1º encontro na estrada.
25 - José Dias Duque
26 - José Dias Fernandes
27 - José Baptista - Morto no 1º encontro na estrada.
28 - José Martins Aguiar
29 - José Nunes Jerónimo
30 - José Meio Morais
31 - Laurindo Teixeira Cunha
32- Manuel António Farinha
33 - Manuel de Oliveira
34- Mário Jerónimo
35 - Mário de Oliveira
36- Mário Teixeira.
37 - Ramiro Augusto Moreno
38 - Raúl Dias
39- Silvino Alves
40 - Sargento Demony Vieira - Ferido no 1º encontro na estrada
41 - Teófilo de Almeida
42 - Cabo de Cipaios - Morto nas instalações do Posto durante o ataque.
43 – 1º Cabo Africano - Dado como desaparecido no lº encontro na estrada,
apresentou-se mais tarde.
44 - Viegas - Cozinheiro do Posto.
(Do Relatório do Chefe do Posto Sena ).
Altar da
Capela, durante os ataques esteve sempre cuidada.
Os reforços para protecção feitos no interior da Capela.
O Tenente Coronel Camilo
Rebocho Vaz,
na altura Governador Distrital do
Uíge
visita Mucaba para felicitar os
heróicos defensores.
No interior da Capela,
o Tenente Coronel Camilo Rebocho Vaz entre os heróicos defensores.
A escada para acesso ao telhado de onde controlavam os terroristas,
e camas improvisadas,
onde um ou outro, tentava descansar enquanto outros vigilavam.
Os heróicos defensores junto aos militares que chegaram a Mucaba.
Mucaba ficará na história de Portugal,
como o último reduto da Portucalidade em África.
O que fica exarado, porém, - conduz-nos a Mucaba - um dos mais brilhantes feitos da nossa História de Além-Mar, e um dos mais gloriosos baluartes da nossa resistência à pretensão dos nossos inimigos, internos e externos, de nos expulsar de territórios nossos há séculos, em seu exclusivo benefício.